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Rendimento Básico Incondicional

Rendimento Básico Incondicional

O RBI numa Viagem

Novembro de 2017. O Rui e a Ana partem de Lisboa rumo a Bragança. Viajam de carro, ao volante vai o Rui. Com o passar das horas o Rui sente-se cansado e pede à Ana para conduzir. Esta recusa fazê-lo, dizendo que prefere ver as paisagens. O Rui acusa-a de ser preguiçosa e de se estar a aproveitar do seu esforço sem nada fazer para o merecer. Terá razão?

 

Novembro de 2018. Voltam a Bragança. O carro em que agora seguem já é capaz de se conduzir por si mesmo, com total segurança e conforto. Apesar disso o Rui, por gostar de guiar, por achar que os humanos não se devem entregar às máquinas ou por qualquer outro motivo pessoal, desliga o computador de bordo, pega no volante e leva o carro. Acaba novamente por se sentir cansado e por pedir à Ana que partilhe consigo a condução. A Ana volta a recusar-se, afirmando querer contemplar as vistas. Mais uma vez, o Rui acusa-a de ser preguiçosa e de se estar a aproveitar do seu esforço sem nada fazer para o merecer. Terá razão agora?

 

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São hoje muitos os que não concedem que pessoas jovens e saudáveis possam escolher não trabalhar e ainda assim viver com dignidade material garantida. Terão razão? Se têm, que razão é essa exactamente, neste momento da História em que o trabalho humano se torna mais desnecessário a cada dia que passa?

 

O mais provável é que, quem leu as linhas atrás, tenha reprovado a recusa da Ana em conduzir o carro quando este ainda tinha de ser conduzido, mas não a sua recusa em conduzir o que já não tinha. É lógico: no primeiro caso, a preguiça da Ana obrigou o seu companheiro de viagem a um esforço suplementar; no segundo caso não o obrigou a nada.

 

Porque não mudam então também o seu juízo os críticos da possibilidade de se viver com dignidade material sem se trabalhar, nesta transição de um passado em que o trabalho de cada um fazia falta a todos, para um futuro em que a maior parte desse trabalho não terá já utilidade nenhuma para ninguém além de, porventura, o próprio?

 

Mudanças de mentalidades, como esta, demoram. É-nos mais fácil acolher as tecnologias novas do que abandonar as ideias velhas. E estas são as duas forças em choque nesta difícil transição.

 

Mas o futuro virá ainda assim. E se no passado preguiçosas eram as “anas” que preferissem contemplar as paisagens a guiar os carros, no futuro, os preguiçosos hão-de ser os “ruis” que permanecerem agarrados ao conforto de manter tudo como sempre foi e se recusarem aos desafios e dificuldades da mudança.

 

Miguel Horta

Decrescimento: uma proposta política para contextualizar o RBI

O movimento do decrescimento teve origem nos anos 1970 no pensamento pós-desenvolvimentista e nos trabalhos de economistas desalinhados das correntes hegemónicas da economia ocidental, nomeadamente de Nicholas Georgescu-Roegen (que é considerado o proponente do termo decrescimento e introduziu o conceito de bio-economia) e dos membros do chamado ‘Clube de Roma’ que publicaram o famoso relatório ‘The limits of growth’ (1972). A transformação daquele pensamento num movimento mais consistente acontece apenas nos anos 2000, principalmente em França, como resultado dos trabalhos de economistas e ecologistas políticos como Serge Latouche, Paul Ariès, Vincent Cheynet e Joan-Martinez Alier. O termo decrescimento surge como um slogan político que traduz uma crítica radical à ideologia do crescimento económico baseado no consumo compulsivo e no produtivismo industrial que aqueles autores consideram estar na origem das crises ambiental (alterações climáticas, extinção de biodiversidade, destruição de ecossistemas, ultrapassagem de limites geofísicos) e social (desigualdade de distribuição de rendimentos, desequilíbrios Norte-Sul) à escala global. Os decrescimentistas atribuem à ‘Religião do Economismo’ uma visão enviesada e insustentável que baseou a robustez da economia e o bem-estar social num crescimento económico medido por indicadores distorcidos, como o PIB, e assente na externalização dos custos ambientais. O movimento põe em causa o (hiper)consumismo, a mercantilização, a globalização destrutiva e o sistema financeiro desregulado, por considerar que conduziram ao esgotamento irreversível de recursos e à destruição ambiental. As ligações entre o modelo económico e a crise ambiental têm sido aliás defendidas por inúmeros pensadores e activistas – p.ex. Hervé Kempf (Para salvar o planeta livrem-se do capitalismo, 2009), Naomi Klein (This changes everything, 2015), Richard Heinberg (The end of growth, 2011) e até o Papa Francisco na encíclica Laudato Si (2015). Segundo os partidários do decrescimento, os pilares em que assenta o sistema económico são o acesso a fontes de energia barata (combustíveis fósseis), a disponibilidade de crédito e o endividamento, a obsolescência programada e a publicidade/marketing, que geraram sociedades viciadas em consumo e desperdício. A crítica radical dos mitos da modernidade - o desenvolvimento, o progresso tecnológico, a abundância derivada da inovação mercantil, a felicidade material – não é nem saudosista, nem anti-civilizatória. O movimento propõe uma desaceleração progressiva dos ritmos de produção e consumo e uma redefinição do bem-estar baseada na frugalidade e simplicidade voluntárias, e na valorização dos bens relacionais e da convivialidade. Alguns autores têm proposto conjuntos de medidas concretas que não cabe aqui detalhar, mas que incluem a relocalização das actividades económicas, a aposta em cooperativas e na agricultura familiar, a promoção de actividades económicas com efeitos ambiental e socialmente benéficos ou a promoção de formas de democracia participativa (ver p.ex. livro de S. Latouche referido abaixo). O decrescimento propõe em suma aquilo que apelida de uma utopia concreta e uma revolução serena: uma nova ética de responsabilidade dos seres humanos entre si, presentes e futuros, e na sua relação com os restantes seres vivos e ecossistemas dos quais dependem.

 

A abrangência do programa político do decrescimento parece-me fornecer o contexto adequado para o lançamento duma proposta de RBI e aproxima-se na sua essência dos principais desideratos dos seus proponentes: a reapropriação colectiva dos comuns, a dignificação e re-humanização do trabalho, e a mitigação do desemprego, da precariedade laboral, da pobreza e das desigualdades. Mas mais importante ainda, a contextualização do RBI no âmbito duma agenda decrescimentista impediria que se consumassem as derivas liberais apontadas por alguns dos críticos do RBI, como a destruição do Estado Social e a promoção do consumismo. Em 2016 foi aliás organizada uma conferência internacional em Hamburgo para promover o diálogo entre os dois movimentos (https://ubi-degrowth.eu/). Creio que a promoção de um amplo movimento de base democrática que reúna as propostas do decrescimento com uma versão progressista do RBI tem sérias hipóteses de inflectir o rumo actual das sociedades do Norte global numa via conducente a uma sustentabilidade ambiental, económica e social, credível e duradoura.

 

Álvaro Fonseca

http://transicao_ou_disrupcao.blogs.sapo.pt/

 

Fontes de informação complementar:

 

Livros, artigos e sites sobre DC:

- Serge Latouche, ‘Pequeno Tratado do Decrescimento Sereno’ (Petit traité de la décroissance sereine, 2007): http://www.edicoes70.pt/site/node/329

- Giorgos Kallis, In defence of degrowth (2017): https://indefenseofdegrowth.com/

- ‘Degrowth: a vocabulary for a new era’ (2015-2017): https://vocabulary.degrowth.org/

- Wikipedia: http://pt.wikipedia.org/wiki/Decrescimento_(economia) https://fr.wikipedia.org/wiki/D%C3%A9croissance_(%C3%A9conomie)

- Joan Martinez Alier, Decrescimento económico socialmente sustentável (2009):

http://arquivo.gaia.org.pt/decrescimento/martinezalier 

- Para compreender o “Decrescimento”, Alan Bocato-Franco (2013):

http://outraspalavras.net/posts/para-compreender-o-decrescimento-sem-preconceitos/

- França: http://www.decroissance.org/ e Revista: http://www.ladecroissance.net/

- Partido pelo decrescimento (França): http://www.partipourladecroissance.net/

- Espanha: http://www.decrecimiento.info/

- Itália: http://www.decrescita.com/

- Suiça: http://www.decroissance.ch/index.php/Accueil

- Brasil: http://decrescimentobrasil.blogspot.pt/

- Canadá: http://degrowthcanada.wordpress.com/

- Internacional: https://degrowth.org/

 

Artigos sobre RBI e DC:

- Entrevista com Vincent Liegey, co-autor do livro ‘A Degrowth Project: Manifesto for an Unconditional Autonomy Allowance’ (Utopia, 2013) e do site http://www.projet-decroissance.net/, que promove a instauração de uma dotação incondicional parcialmente desmonetizada, distribuída sob a forma de direitos de uso de recursos e em moeda local (2014): https://co-munity.net/basic-income/stirring-papers/basic-income-and-degrowth-project

- Degrowth with basic income – the radical combination, J.O. Andersson (Sep2012):

https://www.academia.edu/4589424/Degrowth_with_basic_income_the_radical_combination

http://www.bien2012.de/sites/default/files/paper_237_en.pdf

- Degrowth and Unconditional Basic Income (UBI), S. Füsers and R. Blaschke (2014):

https://ecobytes.net/basic-income/stirring-papers/degrowth-and-unconditional-basic-income

 

Vídeos:

- ‘Our addiction to economic growth is killing us’, antropólogo Jason Hickel da LSE (BBC-Viewsnight, 2017): https://youtu.be/HckWP75yk9g (2 min)

- ‘Decrescimento: do Mito da Abundância à Simplicidade Voluntária’ (Luís e Manu Picazo Casariego, 2016): https://youtu.be/ChclL1naMvY (52 min)

- La décroissance, qu'est-ce que c'est ? (Le Monde, 2014):

http://www.lemonde.fr/economie/video/2014/12/18/la-decroissance-qu-est-ce-que-c-est_4542489_3234.html (3 min)

- Decrescimento: O que é essa palavra repulsiva? (V. Liegey, 2012) (Francês c/ leg. PT):

http://www.youtube.com/watch?v=kWEBVdxppGs (5 min)

- El decrecimiento en 1 minuto: https://redecofeminista.wordpress.com/2013/09/11/el-decrecimiento-en-1-minuto/

 

Artigos sobre crise ecológica e modelo económico:

- Why Climate Change Isn’t Our Biggest Environmental Problem, And Why Technology Won’t Save Us, by Richard Heinberg (2017):

http://www.countercurrents.org/2017/08/19/why-climate-change-isnt-our-biggest-environmental-problem-and-why-technology-wont-save-us/

- O hiperrealismo das mudanças climáticas e as várias faces do negacionismo, Déborah Danowski (2010/2012): http://www.culturaebarbarie.org/sopro/outros/hiperrealismo.html#.WRXXOtQrLUI

- Econocene: the modern era of economism as religious belief, R. Norgaard (2015):

http://www.countercurrents.org/norgaard301215.htm

- False promise: economic growth is coupled with destruction, G. Monbiot (2015):

http://www.monbiot.com/2015/11/24/false-promise/

- Inhospitable planet, G. Monbiot (2015):

http://www.monbiot.com/2015/09/29/inhospitable-planet/

- Only less will do, R. Heinberg (2015):

http://www.countercurrents.org/heinberg220315.htm

- How clean is ‘clean energy’? Renewables cannot solve the global crisis, Saral Sarkar:

https://medium.com/insurge-intelligence/how-clean-is-clean-energy-why-renewables-cannot-solve-the-global-crisis-10205baeb781

- The solution to the global crisis of capitalism is simplicity itself - Toward the post-capitalist revolution, Ted Trainer (2017):

https://medium.com/insurge-intelligence/the-transition-process-the-simpler-way-perspective-f2a64a0a1d6a

Para a história do grupo RBI de Lisboa

III - Como criar esperança nesta época de mudança que vivemos?

 

No ocidente, observa-se o fim do crescimento e o declínio da classe média, juntamente com o crescimento da pobreza e o envelhecimento demográfico. Do ponto de vista financeiro, vive-se uma viragem para a moeda virtual, com o auxílio das novas tecnologias de informação e os efeitos de desintegração social associados.

 

A imaginação dos povos acompanha as transformações práticas da vida, cujos ciclos de crescimento e destruição são cada vez mais curtos e sectoriais, à medida que as vidas das pessoas se alongam e as experiências de vida se trocam através dos processos de globalização e de mobilidade social descendente. A imaginação e o conhecimento transformam-se de unitários (de classe ou nacional) em caleidoscópicos, como descobriram os pós-modernos.

 

Poder-se-ão encontrar padrões fractais capazes de ajudar a compreender a vida, a partir das novas experiências sociais metropolitanas e em rede e das novas potencialidades bio-info-tecnológicas? Saberão as sociedades integrar as ciências ecologicamente convergentes no novo mundo que se anuncia como senhor de novas condições climatéricas?

 

O neo-liberalismo, cioso dos preconceitos economicistas centrados na adoração do mercado, tem procurado menorizar o valor da crítica social. A teoria social, em (má) reacção, encapsulou-se num estado pré-paradigmático, como se dizia nos anos 70, entre as actividades culturais e as ciências propriamente ditas. Defendeu-se e resistiu fechando-se, como os representantes dos trabalhadores o fizeram, em torno do compromisso do Estado Social, na esperança da derrota política do neo-liberalismo permitir voltar ao crescimento económico, como se isso fosse desejável e possível. A crise financeira declarada em 2008, sem reacção útil dos poderes anti-neo-liberais, porém, mostram o fim de uma época, bem presente na sensibilidade das pessoas, sobretudo dos mais velhos, a quem, de resto, atacam as reformas e a confiança, como se já estivessem mortos.

 

A derrota do neo-liberalismo não será espontânea. Como bem revela a história do ano 2009, se as forças anti-neo-liberais não desmantelarem e substituírem as solidariedades entre os poderosos, públicos e privados, as corporações empresariais e os estados continuarão a cooperar entre si, alheados do destino das populações que não tenham utilidade e violentos com quem esteja no local errado à hora errada.

 

O problema é, portanto, como construir uma base material para suportar a convergência subjectiva da miríade de orientações de vida pós-modernas, organizadas sobretudo em torno de organizações não governamentais, assegurando liberdade e democracia que o modelo comunista não soube assegurar? Quando os trabalhadores globalizados perderam capacidade de acção revolucionária, as novas tecnologias unem as classes médias em todo o mundo, a exclusão social se torna um risco banalizado e a pobreza não está a ser atacada.

 

A ficção das agendas políticas no desemprego torna clara a dependência dos trabalhadores relativamente ao capital: antes de dois ou três anos de crescimento dos lucros – mostra a experiência – não haverá queda nas taxas de desemprego (apesar das migrações e das regras penitenciárias impostas aos desempregados para manterem esse estatuto). O crescimento do nível estrutural do desemprego é uma tendência persistente desde os anos 80. A novidade actual é a queda dos salários reais, que se têm mantido estagnados nas últimas décadas.

 

Evidentemente, a competitividade com países do antigo terceiro mundo, por muito rápidos que sejam os crescimentos nalguns desses países, implica necessariamente uma redução nos encargos sociais, fatal para as populações dos antigos países desenvolvidos. Ora, as teorias sociais, concentradas nas questões de poder, marginalizaram (e estigmatizaram) os estudos das dimensões da vitalidade e da identidade sociais. E os partidos políticos, cada qual à sua maneira, mantêm a ilusão de que tudo voltará a ser como dantes, como se estivesse nas suas mãos fechar a globalização.

 

Como se costuma dizer, isto só vai lá com uma nova mentalidade. Nomeadamente, com a crítica profunda (e não apenas superficial) do determinismo economicista ou voluntarista.

 

A vitória da filosofia materialista corresponde a uma era de materialismo fiduciário. Essa época acabou nos anos 70 e a nova era de imaterialidade fiduciária está apenas no seu início. Dinheiro sempre foi uma forma sintéctica de representação das relações sociais. Distribuído em função do “mérito” atribuído por instituições – como as escolas e universidades, mas também associações laborais, patronais, políticas, secretas, e outras – tornou-se, entretanto, monopólio do sector financeiro, que está a destruir todas as instituições – como sempre o capitalismo fez na história – pervertendo-lhes as finalidades.

 

As tarefas que enfrentamos são desmesuradas. E resistir, manifestamente, não está a funcionar. Precisamos de avançar. Mas em que direcção?

 

Logo aparecem as seitas religiosas, as seitas secretas, os partidos, as tradições, a reclamaram que estão no terreno à espera de alguma atenção, faz muitos anos. Nalguns casos milénios. E muita gente tem mantido essas organizações, sem resultados práticos. O desespero, na Europa, tem levado muitos a apoiar soluções diabólicas, como as retomas dos projectos nazis. O que reclama urgência em avanços favoráveis à liberdade e à democracia.

 

A proposta de inauguração de processos de institucionalização de rendimentos básicos incondicionais (RBI) – a qualquer nível, mas sobretudo como forma de ultrapassar a crise institucional da União Europeia – responde positivamente a muitos dos dilemas que deixámos identificados atrás.

 

A economia e o dinheiro, por muito importante que sejam (e são), não esgotam a vida social, nem mesmo as vidas dos seus adoradores. A vida comunitária, as heranças eco-tecnológicas e a construção de hierarquias morais instituídas são pelo menos igualmente fundamentais para os humanos (mesmo para os que vivem da especulação financeira ou outros quaisquer tipos de alienados).

 

O RBI cria um financiamento estável capaz de assegurar uma base simbólica para uma economia social, liberta das condições políticas e das instituições de controlo social. O facto de ser simbólica – já que é apresentada como dinheiro – não evita que seja igualmente material. Na verdade, por ser simbólica não se sabe exactamente a que lhe irá corresponder materialmente. Mas sabe-se que se o dinheiro não corresponder a bens suficientes para assegurar uma vida digna a cada um e a todos os membros de uma sociedade (idealmente, de toda a humanidade) é porque o projecto RBI não está acabado. Se o dinheiro distribuído for tão pouco que se torne uma esmola, constituirá um reforço dos problemas já existentes e mais uma desilusão.

 

Em termos mais pragmáticos, a economia social já existe. Mas é uma economia apenas tolerada, nicho de existência de pessoas dependentes. Ou melhor, cuja independência depende das suas convicções políticas e, portanto, promotoras de dogmas e não de solidariedades; promotora de cumplicidades e resistências em vez de aberturas ao mundo e à igualdade. O RBI suficiente para permitir a cada um passar a ser senhor da sua vida, vencer o destino à força da sabedoria que seja capaz de pôr em prática, por sua própria lavra, sem arriscar a sua existência física, será certamente uma base material para uma transformação social positiva, capaz de melhorar as perspectivas negativas actualmente persistentemente vigentes nas classes trabalhadoras e nas classes médias.

 

Boa maneira de continuar a discutir estes temas é acompanhar o trabalho de criação do modelo familiar cooperativo, http://www.novacomunidade.org/. Ou da https://www.recivitas.org/, no Brasil, através das experiências de vida de Marcus e Bruna.

 

António Pedro Dores

Para a história do grupo RBI de Lisboa

II – Choque com a Realidade

 

Pensámos ir nós ter com a montanha. Soubemos de uma aldeia colaborativa que estava a receber jovens da cidade para lá se instalarem. Eram bem acolhidos e havia amigos desses jovens que também queriam ir. Hesitavam, porque não faziam ideia de como assegurar a manutenção das respectivas vidas, uma vez que o fluxo migratório à procura de melhores condições de vida de faz, precisamente, em sentido contrário. Com um RBI, digamos 500 euros seguros cada um, pelo menos durante alguns meses, a experiência da sua ida para viver melhor onde não costuma ser o caso, a partir do nada, de um quadro negro que deveria ser colorido pela vontade de cada um, livre dos constrangimentos da insuficiência quanto aos recursos fundamentais para sobreviver, seria uma reveladora experiência RBI: será que estes jovens desadaptados, ao fim de alguns meses, seriam capaz de se integrarem numa sociedade desconhecida e produzir mais valias partilháveis com os outros aldeãos cooperativos?

 

Descolámo-nos ao local, para expor a ideia a um dos dirigentes e fomos bem-recebidos. Um dia, organizou-se um encontro, em Lisboa, de alguns jovens interessados em emigrar em sentido inverso da tendência global com mais de duas centenas de anos, outros que já viviam na aldeia e nós. Pessoas interessantes e motivadas, com boas formações. Mas o entusiasmo que sentíamos com o RBI não lhes assomou. Que estavam de acordo que era uma ideia genial, sim. Que se mexeriam para fazer alguma coisa inspirados nela, alguns sim. Que se mexeram, não. Os jovens da aldeia, soube-se depois, acharam que era um projecto que iria demorar muito tempo a concretizar-se, para aí dois anos. Não estavam interessados. Os projectos de economia social exigem, dos seus praticantes, concentração total no curto prazo. Precisam de ter os pés no chão: aquilo é uma actividade económica como as outras.

 

Na verdade, pensando melhor, o que nós então dizíamos, como a maioria dos defensores do RBI diz, é que alguém distribuirá o dinheiro pelas pessoas. Nesse entendimento, com toda a razão, os nossos potenciais beneficiários disseram-nos que os chamássemos quando começássemos a distribuir o dinheiro. E nós, na prática, não o tínhamos. Pensámos angariar dinheiro através de um crowdfunding: fizemos um link na internet para que quem estivesse disposto a contribuir regularmente para alimentar uma experiência destas nos desse o seu endereço de email. Se cada um dispusesse de 5 euros mês, bastariam cem pessoas para poderem oferecer 500 euros a um jovem. Este ficaria encarregue de contar as suas angústias e as suas experiências na aldeia cooperativa, o que pagaria o retorno de quem contribui mensalmente. Isso ajudaria a aumentar o número de interessados nas nossas conversas semanais e seria um atractivo turístico para a aldeia. Mas não funcionou.

 

O nosso entusiasmo continuava a ser demais para a realidade.

 

Decidimos, então “bater de frente”.  

 

António Pedro Dores

 

(Continua)

Para a história do grupo RBI de Lisboa

I - Os Primeiro Passos

 

Dezembro de 2013, em Lisboa. Alguém convocou uma reunião de interessados em organizar alguma actividade de animação da ideia de um rendimento básico incondicional, descrito conforme a propaganda que estava a circular preparada para apoiar a subscrição de uma petição para o parlamento europeu, que o levasse a organizar uma discussão dos deputados sobre o assunto. Quem convocou não chegou a aparecer. Mas a sua iniciativa teve efeito: os que apareceram no local designado, um restaurante junto da Ribeira, reconheceram-se e acolheram-se a um café onde puderam manifestar o seu entusiasmo pela ideia e a disponibilidade de quase todos para fazer alguma coisa a esse respeito.

 

Foi assim que começou a vida do grupo RBI de Lisboa. Primeiro a tentar seguir as reuniões domingueiras, à noite, através de computadores, com animadores sediados no norte do país. Depois através de encontros presenciais algures perto do Campo Grande, em Lisboa. Todas as semanas reuníamos e falávamos sobre o que cada um entendia ser ou dever ser o RBI. Fazíamos, dissemos a nós próprios, acções de auto-formação.

 

Três de nós eramos pendulares. Outros vinham e iam, conforme as suas possibilidades e interesse. A tomar os três permanentes como representantes de tendências que ali se juntaram, dir-se-ia, traçando-lhes os respectivos perfis, terem convergido os desiludidos com as várias ressacas da imaginação política vividas depois do 25 de Abril – eram os mais velhos, felizes por estarem entre gente mais nova, como se fosse uma conspiração – os desiludidos de movimentos recentes centrados na esperança da transformações tecnologicamente induzidas poderem ajudar as pessoas a viver melhor – diziam que se já não lhes era possível imaginar organizar a vida sem dinheiro, ao menos que se desse um passo nessa direcção, com o RBI – e os voluntarista, dispostos a servir a causa usando os recursos das novas tecnologias de informação e comunicação, que achavam o máximo e, para mais, super eficazes a fazer revoluções.

 

Entretidos uns com os outros, a partir do momento em que a auto-formação começou a ser repetir assuntos e constatar divergências de opinião, perguntámo-nos se não era melhor sair do nosso covil conspirativo e fazer alguma coisa que pudesse expandir e alimentar o nosso entusiasmo. No Norte, a dinâmica de conversas tinha esmorecido, diziam aqueles que continuavam a manter esses contactos. Não conhecíamos outros grupos reunidos em torno do mesmo entusiasmo. Entre nós, a número de participantes também não cresceu, apesar de serem reuniões abertas, isto é, anunciadas nas redes sociais e vistas por muitas pessoas interessadas no tema. Seria a hora de concluir que o nosso empenho era singular. Para se espalhar por Portugal teria de ser com esforço.

 

Usámos a internet para nos voluntariarmos para fazer sessões de esclarecimento, e fizemos algumas em tertúlias organizadas que quiseram tomar o RBI como tema de discussão e entretenimento. Sempre com animação das plateias, fomos em grupo e discutíamos uns com os outros na frente de terceiros. Mas o trabalho não foi extenuante. Fomos sobretudo fora de Lisboa. E, para quem está em campanha, não fomos muitas vezes.

 

António Pedro Dores

 

(Continua)

A questão do rendimento básico incondicional

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Qual é a questão com este assunto do rendimento básico incondicional (RBI)? Porque razão é tão difícil levá-lo para a frente? A razão, parece, está profundamente enraizada na psique humana. Como Will Hutton terá escrito, “os humanos acreditam que a recompensa deverá resultar de um esforço proporcional”. Ora esta é a questão, não será? Hutton argumenta que os seres humanos foram concebidos para relacionar trabalho e ganho, e ponto final. Não há volta a dar. Quem não trabuca, não manduca, como diz o povo. Ora vamos discutir isto.

 

Se eu for acampar com uns amigos, ficarei satisfeito se todos ajudarem com a cozinha, a limpeza, a montagem das tendas, corte de alguns ramos para a fogueira e por aí fora. E vou protestar se alguém simplesmente ficar sentado enquanto todos os restantes estão a montar o acampamento. Isto é assim porque o trabalho envolvido apenas pode ser realizado por pessoas, pelos próprios campistas, e para o seu próprio benefício. É uma equipa, e é apenas justo que todos os membros da equipa colaborem na preparação do acampamento do qual todos vão beneficiar. Assumamos agora que esta é uma turma de campistas altamente tecnológicos, que trouxeram tendas de montagem automática, um fogão portátil com baterias, um robot de limpeza e um conjunto completo de comida enlatada. Quanto trabalho haveria para distribuir pelos campistas? Talvez apenas colocar as tendas nos seus lugares (estas iriam montar-se automaticamente a partir daí), ligar o fogão e abrir algumas latas. Isso poderia ser facilmente feito por uma pessoa, talvez duas no máximo. E os restantes? Bom, talvez seja melhor que se deixem ficar sentados e cantem algumas canções, o jantar estará pronto brevemente. Não me parece nada errado.

 

O papel da tecnologia torna-se evidente neste exemplo simples. Os seres humanos não foram concebidos para relacionar trabalho e ganho. Os seres humanos apenas se chateiam se tiverem de trabalhar mais do que precisariam se outras pessoas não estiverem a ajudar. Mas se máquinas estiverem a providenciar essa ajuda, deixa de ser injusto. Além disso, se as máquinas estão a ajudar e não faz sentido estarem seis pessoas a carregar em botões de tendas e a abrir latas, eu não me importo de fazer isso hoje e amanhã outra pessoa irá fazê-lo. E nessa altura vou sentar-me confortavelmente e tocar a minha guitarra, sem o menor sentimento de culpa.

 

Outra questão é que poderá ser que alguns “humanos acreditam que a recompensa deverá resultar de um esforço proporcional”, mas com certeza não será o caso de todos. Há pessoas que, vivendo de rendas – provenientes de terrenos, casas, ações de corporações ou ativos financeiros – não sentem vergonha, ou culpa, ou qualquer sentido de responsabilidade perante a sociedade. E, no entanto, são humanos. Os seres humanos não são concebidos desta ou daquela maneira. Somos produto do nosso ambiente e de circunstâncias particulares.

 

Ainda outra questão é a da herança. Não será verdade que todos, e quero mesmo dizer todo o ser humano à face deste planeta, nasce para uma longuíssima linhagem de evolução natural e social? Um recém-nascido não terá de reinventar a eletricidade para poder acender uma lâmpada na sala. Não terá de redescobrir a linguagem escrita para poder comunicar. Não terá de fazer betão a partir do nada para construir uma casa. As sociedades humanas tornam estas riquezas já existentes mais ou menos acessíveis aos indivíduos, mas é inegável que esta riqueza, natural ou social, existe. E está aí para a partilha, tendo crescido e aperfeiçoado ao longo de milhões de anos. O facto de não termos sido capazes de a partilhar durante tanto tempo, como uma sociedade global, é um assunto totalmente diferente. A verdade é que cada um de nós nasce num mundo extremamente rico, sem ter contribuído em nada para tal. Isso não é uma questão para debate, é apenas um facto.

 

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Portanto, quantos argumentos há contra o RBI? A mim parece-me que apenas um. Porque uma vez aceite que todos os seres humanos têm direito a aceder a essa riqueza do mundo natural e de incontáveis gerações passadas de seres humanos, uma pessoa já estará a defender o RBI do ponto de vista moral. Porque não há maneira, seja lá qual for o ponto de vista, de uma pessoa alguma vez realizar um “esforço proporcional” para compensar o que recebe apenas pelo facto de estar vivo. Vamos, portanto, simplesmente passar à frente deste argumento irritante e fundamentalmente errado.

 

A seguir uma pessoa poderá perguntar-se: ok, o RBI é muito bom. Mas como é que agora o vamos financiar? Sejamos claros, um aspeto financeiro não poderá ser usado como um argumento fundamental contra o RBI. O financiamento tem a ver com distribuição de poder. O dinheiro é um acordo, e as pessoas poderão acordar de outras maneiras. O financiamento é, portanto, um desafio que resulta de vivermos todos juntos em sociedade. Diferentes pessoas têm diferentes perspetivas e sentimentos relativamente às coisas, mas se concordarem entre elas que a distribuição da riqueza social e natural deverá ser realizada por todos, como um direito humano, então o dinheiro irá aparecer nesse sentido. Alguns irão concluir que “por milagre”. Um milagre a partir de uma mentalidade obsoleta, uma consequência natural a partir de uma visão do mundo mais evoluída, expandida e inclusiva.

 

Uma vez que uma pessoa aceite o RBI do ponto de vista moral e tenha encontrado uma forma de o financiar – o que equivale a juntar uma quantidade suficiente de pessoas que suporte a ideia e desvie ou crie dinheiro para o implementar – ainda se poderá perguntar: mas e se a ideia for capturada pela extrema-direita, que apenas querem acabar com os Comuns, enterrar o Estado Social e privatizar tudo? Isso equivale a perguntar: e se um ditador qualquer captura o poder e transforma uma democracia imperfeita numa perfeita ditadura? Ao que eu respondo: temos de nos manter ativos e conscientes, a democracia não é um sistema escrito na pedra e temos de constantemente o defender e contribuir para este. Tudo pode ser transformado numa arma, para uma mente maldosa. Ou o RBI pode ser transformado numa ferramenta-de-privatizar-tudo para uma agenda da extrema-direita. Esse risco existe sempre. No fundo tudo depende de nós, indivíduos conscientes a defender o RBI e a saber como o financiar, a defesa da democracia em todos os momentos.

 

O RBI só pode ajudar todas as pessoas se for suportado e implementado democraticamente.

 

Mais informação em:

Will Hutton, “Utopia for realists: and how we can get there by Rutger Bregman – review”, The Guardian, 13 Março 2017

 

André Coelho
Engenheiro / engineer: Ecoperfil, Sistemas Urbanos Sustentáveis Lda.
Músico / musician: Contaminado, MPex
Ativista / activist: RBI Portugal (+ blog RBI), Architects and Engineers for 9/11 Truth, Basic Income News

O Direito ao Trabalho

A Teoria da Relatividade foi um trabalho de Einstein, que para se sustentar mantinha entretanto um outro trabalho, rotineiro e banal, num escritório de Berna. O assalto de 1866 ao banco de Liberty, no Missouri, foi trabalho com a marca de Jesse James. Antes da proibição, pela 13.ª emenda à respectiva Constituição, as plantações no sul dos EUA eram mantidas com trabalho escravo. A educação de uma criança é trabalho dos seus pais; o cuidado de um idoso trabalho dos seus filhos. A ida à lua foi um trabalho colectivo de grande engenho e coragem. O trabalho dos judeus em Auschwitz seria libertador, de acordo com o portão. O sucesso de Cristiano Ronaldo é fruto do seu trabalho. Versos de elogio à preguiça são um trabalho do génio de Fernando Pessoa.

 

A criação do Universo, por Deus ou pela natureza, pode dizer-se trabalho, e o “rolar de bosta” pelo escaravelho até ao buraco no solo de um sertão qualquer, também. Entre estas duas, o trabalho humano cobre todo o espectro de possibilidades.

 

A diversidade de realidades a que nos podemos referir com a palavra “trabalho” é tão grande que se tornam vãs as qualificações que constantemente se lhe colam com frases feitas: nada do que sobre o trabalho se possa dizer será verdadeiro para todas as formas que ele pode assumir. “O trabalho emancipa”, diz-se; mas emancipa? Algum sim, muito outro não. Diz-se que “trabalhar é contribuir para a sociedade”, mas é? Às vezes sim, mas também há muito trabalho socialmente destrutivo, algum dele até bastante bem pago. Diz-se que nos “realizamos pelo trabalho”, mas realizamos? Só se tivermos a sorte de poder fazer o trabalho certo para nós, porque se não a temos pode ser precisamente a necessidade de trabalhar o que nos afasta de nos realizarmos.

 

Sendo o trabalho este caleidoscópio de formas tão diversas, o que poderá ao certo querer quem reivindica o “direito ao trabalho”? Poderá querer licença para tentar perceber a natureza praticando ciência? Para se exprimir praticando arte? Para se superar praticando desporto? Para produzir bens ou serviços praticando alguma indústria? Para melhorar a vida de um avô prestando-lhe cuidados? Não exactamente. Quem reivindica o direito ao trabalho pretende fazer qualquer destas coisas, ou um milhão de outras, mas recebendo dinheiro por isso. Principalmente recebendo dinheiro por isso. Pretende um meio de subsistência. Porque trabalho, propiamente dito, não falta: quem apenas quer trabalhar, trabalha sem ter de pedir licença a ninguém. Há hoje, como sempre houve, milhões de cientistas, de artistas, de desportistas, de industriosos, de cuidadores e em geral de pessoas activas que nunca reivindicaram o direito a fazer o que fazem: simplesmente fazem-no. Mas a subsistência sim, para os muitos que não a têm assegurada ela tem de ser reivindicada.

 

E isto é o que acontece neste nosso tempo: quem quer reivindicar meios de subsistência não o faz directa e assumidamente, reivindica antes o direito ao trabalho. E quem reivindica o direito ao trabalho, na realidade, o que está a fazer é a reivindicar meios de subsistência.

 

A subsistência disfarça-se de trabalho. O caso de Einstein ilustra-o bem: usou o escritório de Berna como meio de subsistência, enquanto o seu real trabalho era a Física. Mais: o escritório só podia atrapalhar esse trabalho e, assim que pode, ele deixou-o. Ainda bem, os livros de História não nos falam da obra que deixou no escritório, só da que fez no seu tempo “pós-laboral”.

 

E nós, gentes do início deste século XXI, não ilustramos esta realidade pior do que Einstein. Na maior parte dos casos, o que fazemos nos nossos empregos dificilmente deixará marca de relevo, quer na história do mundo quer na das nossas vidas pessoais. Entreguemos então essas tarefas às máquinas, que já as podem fazer ou poderão muito em breve. Dediquemo-nos, cada um, àquilo por que o seu interior clama (e se for preciso, reaprendamos a escutar esse clamor interior, que os anos de luta pela subsistência nos treinaram para abafar). Dediquemo-nos àquilo a que nos faça realmente sentido dedicarmo-nos. Trabalhemos, se trabalhar for para nós, mas que esse trabalho não seja mais subsistência disfarçada. Que seja, para cada um, a obra especial que sente poder deixar no mundo, e a que preencherá de significado a sua existência.

 

Ao serviço da subsistência, como o temos, o trabalho ocupa hoje nas nossas vidas um plano muito inferior àquele que deveria ocupar. Temo-lo como meio, em vez de como fim. Servimo-nos dele para sobreviver, em vez de o termos como forma elevada de viver.

 

No futuro isto mudará. Terá de ser. No futuro, o problema do direito à subsistência terá de ser directamente atendido por um Rendimento Básico Incondicional (RBI). E se o for por um RBI que dê, a todos, garantias de subsistência material não só presentes mas também futuras; um RBI não apropriável por nenhuma elite que o possa colocar ao serviço dos seus próprios interesses; um RBI mantido e controlado pelas pessoas comuns, isto é, um RBI de Todos para Todos (RBI-TT), seremos então finalmente libertados para viver e nos ocuparmos do que nos faça realmente sentido. Ganharemos, enfim, o direito de nos dedicarmos aos trabalhos que sentimos merecer o nosso empenho.

 

A actual tentativa de se assegurar indirectamente o direito à subsistência através deste chamado “direito ao trabalho” não assegura convenientemente nenhum dos direitos. Atender directamente ao direito à subsistência através de um RBI-TT assegurará não só este como, sem necessidade de qualquer acção adicional, o verdadeiro direito ao trabalho.

 

Estando garantida a subsistência deixará por fim o trabalho de ser mera necessidade. Será elevado a escolha, a realização pessoal, a aspecto de vida emancipada e plena. Só estando garantida a subsistência será verdadeiramente o trabalho um direito consagrado para todos.

 

Miguel Horta

O RBI TT Num Só País (6.ª parte)

Novo paradigma socio-político

 

Alguma coisa irá fazer evoluir muito rapidamente o estado actual da política, metida num beco sem saída. Sentados à espera não é boa política. É preciso criar esperança e orientações claras para mobilizar as pessoas. De preferência contra a guerra, as conspirações, a miséria, a discriminação, os estigmas, o abuso.

 

O RBI TT não resolve nenhum desses problemas. Criará – já está a criar nos círculos em que é entendido – um ambiente social favorável a enfrentar e procurar resolver problemas, em vez de os delegar no estado e nas empresas, cujos interesses, manifestamente, não estão a ser capazes de orientar as sociedades a bom porto.

 

Portugal, país de dimensão média, o mais antigo estado nacional, dos raros que não têm divisões internas nacionalistas, aberto ao mundo por obrigação e vocação, desejoso de voltar a cumprir papéis históricos como os anunciados por Camões, na senda da nossa costela judaico-cristã, está em excelentes condições de se auto-determinar em voltar a descobrir o caminho (agora não apenas marítimo) para o futuro. Basta abandonar o seguidismo que tem caracterizado as últimas décadas e, sem prescindir da identidade europeia entretanto fortalecida, dar novos mundos (sociais) ao mundo (desgastado com a brutalidade da aliança estado-mercado da versão actual da globalização).

 

António Pedro Dores

O RBI TT Num Só País (5.ª parte)

RBI no mundo da política

 

O RBI TT deverá ser integrado num pacote político mais geral para fazer sentido. Essa foi uma frase dita várias vezes no encontro. Por exemplo, poderia estar integrado em campanhas nacionais de combate à corrupção e a evasão fiscal, de realização de uma política de povoamento racional do território, de valorização do trabalho assalariado, de consideração pelo trabalho não remunerado socialmente útil, de condenação do trabalho socialmente nocivo, nomeadamente poluidor, de mau trato de animais, que inclui a humilhação de seres humanos, de combate ao síndrome estigmatizante do desemprego, de abolição das políticas de reprodução da pobreza, como as assistencialistas e as armadilhas, de reconfiguração das políticas contra a pobreza, de respeito pelo direito à habitação imposto pela constituição portuguesas e desrespeitado pelo estado.

 

Algumas destas políticas foram mencionadas. Mas outras não. Isso mesmo foi notado por um dos oradores que se perguntou por que razão o governo actual, legitimado para reverter as políticas anti-sociais do governo liderado pela Troika, não reverteu os abonos de família universais, abolidos pelo governo anterior? Abono de família que é um protótipo etário do RBI.

 

Esta pergunta é uma boa entrada para compreender o tabu de parte importante dos oradores – comprometidos com a instável solução governativa contra a possibilidade de novo governo da troika em Portugal. Para eles, o Estado Social, ao menos a palavra, deve ser santificada. Pois é ela que permite construir a unidade política dos partidos e alimentar a esperança da sua base de apoio. E foi precisamente o Estado Social o mote para negar as virtudes, reconhecidas, das ideias implícitas no RBI: simplicidade, desburocratização, liberdade individual mesmo para os que querem usar os seus magros recursos para tomar pequeno almoço fora (surpreendente versão de esquerda da declaração da srª. Jonet a explicar que nem todos podem comer bifes).

 

O RBI destruiria a esperança do pleno emprego, destruiria o mundo do trabalho e a sua ética própria, as políticas sociais de inclusão dos pobres (pobres de recursos e pobres de espírito), as escolas públicas, criaria classes sociais (?) entre os que não queriam trabalhar e os que trabalhariam, etc. Nada ficaria de pé caso o RBI fosse implementado. Mas ninguém consegue deixar de dizer que se trata de uma ideia atrativa e própria de pessoas compassivas e voluntariosas. O problema seriam os malandros que estão por de trás dessas ideias – quem seriam? E que tinham não só intenções maléficas e perversas, como teriam a capacidade de as por em prática. Tão poderosos que eles são.

 

Um único exemplo citado, que me recordo, desses malandros foi o presidente Nixon, dos EUA. Exemplo do início das políticas neoliberais que se espalharam pelo mundo desde então. E que não mais tiverem seguidores, no que ao RBI diz respeito. Será um bom exemplo?

 

Esta teoria da conspiração, para justificar evitar discutir as ideias e as políticas pelo seu valor facial, faz-me lembrar uma anedota que vi no youtube, em que Moisés chega junto dos seus companheiros com as tábuas da lei e lhes afirma que um dos mandamentos que ele recebera de Deus, enquanto fora passear pela montanha, era “Não usarás o nome de Deus em vão!” Os amigos deram uma grande gargalhada e perguntaram-lhe o que ele acabara de fazer, nesse preciso momento? Os nossos preocupados Pedros, que nos chamam a atenção das conspirações, são eles, nesse preciso momento em que nos avisam, os primeiros, senão únicos, conspiradores. O lobo não está a vir: já cá está. São as votações que mostram, mesmo aos cegos, que a serpente já saiu do ovo.

 

Há uma dinâmica de pequenos passos na discussão do RBI a impor-se na agenda. Falta haver defensores do RBI, ou melhor, de um RBI para agora, já. Um RBI que seja capaz de combater a desesperança própria de um longo e pesado fim de ciclo de longa duração.

 

Se o RBI-TT for implementado, já, deixará de haver pobres tão economicamente pobres como as condições de recursos actualmente exigidas para ser beneficiário do Rendimento Social de Inserção (RSI). Por isso é que o RBI TT custará tão pouco ao estado, como mostram os cálculos para 2012. Por outro lado, deixará de ser possível aos serviços sociais intrometerem-se na vida dos pobres, porque, como foi reconhecido, ninguém aceitaria as humilhações actualmente impostas sem serem forçadas a tal. O facto de isso ser inaceitável, para alguns defensores das políticas contra a pobreza, revela as suas intenções de controlo social contra os pobres. Teriam, de facto de repensar o que andam a fazer. Talvez dedicarem-se a controlar a vida dos ricos.

 

Os pobres alimentados pelas políticas de pobreza votam. Talvez votem pouco. Mas votam frequentemente contra os seus próprios interesses. Nos EUA e na Europa. Preferem ser vigarizados pelos fascistas, que os reconhecem simbolicamente como Povo, do que ser humilhados pela caridade hipócrita instalada nas políticas sociais.

 

A conjuntura política em que a exclusão e a pobreza são desprezadas e discriminadas é uma das causas fundamentais da emergência política da violência nos corações das pessoas e nos votos nas urnas. O RBI TT vai em sentido inverso: substitui a procura das culpas nas ideias fascistas, na ignorância dos pobres que não sabem votar, nas práticas excessivas de consumo dos que não têm rendimentos, nos políticos corruptos, nos estrangeiros, nos terroristas, e em todos os outros fetiches que servem para distrair da recorrente violação dos direitos consagrados na lei, por uma política de corresponsabilidade das pessoas consigo mesmas e com os outros, a nível familiar e local mas também nacional e regional.

 

Todos os meses haveria écrans por todo o lado com os valores mensais do fundo RBI TT. O rendimento geral obtido pelo sistema, que poderia crescer imediatamente 25%, se é verdade que a economia paralela vale isso em Portugal e se os cidadãos passassem a declarar todos os seus rendimentos, pela simples razão cívica de que seria melhor para todos haver mais rendimento declarado.

 

Os cidadãos, sobretudo os mais pobres, passariam a estar informados do valor relativo dos milhões de euros, pois aprenderiam a conhecer a correspondência entre o valor do fundo RBI e a prestação recebida pessoalmente na conta do banco. Como passariam a ter que julgar as razões dos que, portugueses (jovens e crianças, por exemplo) ou estrangeiros, reclamariam passar a integrar de pleno direito a população abrangida pelo RBI.

 

António Pedro Dores

 

(Continua)

O RBI TT Num Só País (4.ª parte)

O papel das universidades

 

O vigor da proposta RBI resulta do vigor do activismo académico na defesa dessa ideia vaga, que precisa ser concretizada. Os hábitos académicos, de ponderação inacabada e sempre aberta, não se coadunam com a necessidade de tornar o RBI num processo político pragmático. Há que jogar o jogo da política.

 

O RBI não é um modelo de sociedade. Não concorre com as ideologias. É um modelo de negócio contra o ócio social. Todos passarão a ter o suficiente para viver e, portanto, devem preocupar-se sobre como viver uma melhor vida possível. Para isso, presume-se que as pessoas deixarão de fazer aquilo a que são obrigadas e passam a fazer aquilo que lhes parece mais útil. Passarão a assumir o princípio da subsidiariedade nas suas próprias mãos. Quer dizer, milhões de pequenos problemas que atrapalham o nosso quotidiano tenderão a desaparecer. Pela simples razão de que a liberdade conquistada exige, espontaneamente, responsabilidade, orientação para a vida. Com excepções, certamente. Mas não tantas quantas as que se verificam actualmente.

 

O ócio social, a apatia social, o alheamento político, têm permitido a economia e o estado tornarem-se os únicos sujeitos da história recente. A tal ponto que há quem sonhe com revoluções. Com o ressurgimento do Povo, o místico soberano da modernidade. O RBI é um modo de financiar o trabalho de auto-cuidados e de apoio mútuo entre as pessoas, tornando-as mais disponíveis para assumir a sua dignidade e os seus direitos, em vez de deixar as teorias jurídicas favoráveis aos direitos nos tinteiros, sem aplicação prática.

 

O terrível exemplo dos refugiados é a prova provada da degradação dos valores europeus. Não por pressão do terrorismo. Mas por efeito da desresponsabilização dos estados e das sociedades do respeito pela humanidade, em nome da economia.

 

A híper especialização académica permite as universidades terem ficado alheias às crises dos refugiados, aos ataques políticos à liberdade de expressão e ensino na Turquia, ao crescimento da xenofobia na política europeia, e a todos os grandes temas da sociedade. Estamos habituados a reagir cada um na sua disciplina e subdisciplina. O RBI tornou-se um tema subdisciplinar. A maioria dos seus praticantes são aspirantes a conselheiros do príncipe. Tão romântico!

 

A verdade é que as universidades têm sido, seria de estranhar outra coisa, um dos mais fortes bastiões do discurso único. Sobretudo as ciências sociais e, dentro destas, a economia e a gestão. Não será possível organizar um debate político RBI fora das universidades? Sem excluir ninguém? Eis um desafio para a sociedade civil. Lá onde ela possa estar.

 

António Pedro Dores

 

(Continua)

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