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Rendimento Básico Incondicional

Rendimento Básico Incondicional

Será o RBI o fim da espécie humana?

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Será que a introdução de um Rendimento Básico Incondicional (RBI) fará com que deixemos de trabalhar? Esta parece ser a questão à qual se poderão reduzir muitas das objeções relativas ao RBI. Direito ao trabalho, pleno emprego, reciprocidade, alimento a vícios, ociosidade, todas estas questões cruzar-se-ão algures com a dúvida: irá acabar o trabalho? A questão não deverá ser ignorada, nem descartada de ânimo leve. Na sua génese está uma preocupação fundamental, mesmo uma espécie de medo existencial: haverá que chegue? Ou, por outras palavras: iremos sobreviver? Literalmente, é uma questão de vida ou de morte. E é natural que esse receio surja, tendo em conta o historial da espécie humana, no qual a sobrevivência esteve a maior parte do tempo ligada ao trabalho direto sobre os recursos, preparando-os para consumo humano.

 

Consideremos, no entanto, esta questão do ponto de visa tecnológico e as transformações ao nível da distribuição do trabalho dos últimos 2/3 séculos. Nas ditas "sociedades desenvolvidas", pelo menos, há várias décadas que o trabalho (aqui visto como emprego de humanos) no setor primário deixou de ser preponderante, nem tão-pouco o industrial, sendo que a maior fatia da população se emprega então no dito setor terciário, ou de serviços[1]. Como já há algum tempo se sabe, a pobreza e a miséria são essencialmente fruto de deficiente distribuição, não da falta de recursos para consumo humano. O que terá acontecido, então? Nada de muito surpreendente. Simplesmente começaram a utilizar-se inovações tecnológicas para produzir os mesmos  bens essenciais, com recurso a muito menos mão-de-obra humana.

 

Qualquer agricultor ou industrial sabe que, à parte de qualquer desejo de realizar certas tarefas manualmente[2] (desejo esse que poderá ser totalmente genuíno, não está isso em causa), a automatização trouxe aumentos vertiginosos de eficiência, redução do tempo despendido na produção de cada unidade, bem como acentuadas reduções de custo na produção dessas mesmas unidades. Tanto assim é que já se fala em sociedade com custo marginal zero (The Zero Marginal Cost Society, título aliás do mais recente livro de Jeremy Rifkin[3]). Embora essas visões de sociedade sejam discutíveis, já não será tão discutível que não estamos  perante uma escassez de produtos essenciais acabados, mesmo que uma parcela considerável  da população deixe de trabalhar[4]. Isto nos ditos "países desenvolvidos".

 

Nos ditos "países em desenvolvimento", se há maior parcela da população empregada no setor primário - quando não está massivamente no desemprego (ex.: na África do Sul o desemprego real ascende a mais de 40% da população com capacidade para trabalhar[5]) - tal não se deve à indisponibilidade dos meios de produção automatizados, mas à desigualdade na distribuição desses mesmos meios. Portanto, o que acontece e continuará a acontecer nos "países desenvolvidos" vai também acontecer nos "países em desenvolvimento". Para recordar: a produção necessária de bens essenciais com o trabalho de uma reduzida (e em diminuição) parcela da população.

 

Que fique claro: não existe um problema de falta de bens essenciais nem vai haver, desde que utilizemos a tecnologia ao nosso dispor e as pessoas necessárias (necessariamente poucas face à totalidade da população) para operar essa tecnologia. O que escasseia é empatia e vontade de distribuir esses bens produzidos. É a falta de conexão e sentido comunitário que põem em risco a sobrevivência da espécie humana. Daí, ao contrário de um medo, apesar de tudo infundado - numa análise mais cuidada - que o RBI irá gerar preguiça ao ponto de promover a escassez de bens essenciais, será precisamente pela introdução de uma política solidária e de distribuição comunitária, como o RBI, que aumentamos as nossas probabilidades de sobrevivência. E já que entramos por aí, de vivência, alegria e felicidade.

 

[1] - Como um exemplo, a estrutura do emprego sectorial do Reino Unido, em que a parcela empregue no setor terciário ronda os 70%.

[2] - Por exemplo a manufatura de instrumentos musicais acústicos ou a colheita de certas espécies agrícolas.

[3] - Rifkin, Jeremy, 2015, "The Zero Marginal Cost Society", Palgrave Macmillan Trade.

[4] - Admitindo por simplicidade que a população empregada em serviços não será necessária para a estrita produção de bens essenciais. Em Portugal por exemplo poderiam ser dispensadas do emprego 68% de todos os empregados, garantindo esse efeito (Pordata, População empregada: total por setor de atividade económica). Naturalmente  que condicionalismos como o regime de importação/exportação/produção e a parcela da população dedicada a serviços a dar serventia direta a atividades do setor primário e secundário afetam a determinação, mas em todo o caso a % citada é indicativa de uma tendência.

[5] - BIG Financing Reference Group. "“Breaking the poverty trap”: Financing a basic income grant in South Africa." Basic Income Grant (BIG) Financing Reference Group conference, Johannesburg, 24 November 2003. Março, 2004.

Pleno emprego versus Rendimento Básico Incondicional

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 Percebo de onde vem o desejo pelo pleno emprego. Vem de uma noção básica e fortemente enraizada de reciprocidade: para receber algo, há que dar algo em troca. Em termos de princípio, não vejo mal nenhum com esta noção: afinal, não haverá nada, nem ninguém, que apenas receba, ou que apenas dê. Em geral, qualquer uma das situações extremas é, no geral (salvaguardando as devidas exceções), contranatura e insustentável. Afinal, todos os processos e seres vivos são, de uma forma ou de outra, interdependentes. O pleno emprego aparece então como mecanismo para garantir que todas as pessoas capazes de contribuir irão fazê-lo, justificando então o rendimento que irão receber por esse serviço à comunidade e, portanto, o direito à sua cota-parte no acesso aos recursos. No entanto, há vários problemas com a defesa desta tese.

Primeiro, parte de um lugar de desconfiança, ou seja, não assume que a pessoa vai contribuir, vai dar à sociedade , se deixada livre para tal. Assume sim que esta necessita ser obrigada, caso contrário cai na inação. Para todos receberem todos são obrigados a contribuir, logo a trabalhar. O problema aqui, note-se, reside na coação.

Segundo, a tese do pleno emprego parte do princípio de que é sempre possível ir buscar rendimento suficiente para viver condignamente, através da oferta de trabalho remunerado no mercado. Ora verificase cada vez mais que tal não é o caso. O desemprego estrutural tem aumentado sistematicamente nos últimos anos *1 , com dados da taxa de desemprego real a chegar aos 29% em finais de 2014 **2 . Por outro lado, a quantidade de trabalhadores pobres é considerável, com a taxa de risco de pobreza superior a 10% mesmo em situação empregada ***3 . Ignora também a quantidade crescente e potencial de automação de tarefas, logo agravando o desemprego estrutural ****4 . Esse potencial de substituição foi estimado em 47% nos EUA nos próximos 10 a 20 anos, e em países em desenvolvimento até aos 85% *****5 .

Terceiro, não distingue tipos nem a natureza do trabalho em questão. Aparentemente, segundo essa lógica, será igualmente bom (ou igualmente mau) realizar trabalho numa empresa de armamento ou numa pequena empresa sem fins lucrativos dedicada a projetos de desenvolvimento social e ambiental. Interessará apenas, portanto, estar empregado - obter rendimento através de um trabalho remunerado - e qualquer outra consideração acerca das tarefas trabalhadas é irrelevante. Fossem os únicos empregos disponíveis no mercado mundial trabalhar nas tar sands ou no call center local, e certamente já não existiria espécie humana.

Quarto, e último, parece implícito que a vontade do próprio é irrelevante. A pessoa trabalha no que houver disponível. Se não houver oferta suficiente de empregos no mercado, o Estado encarrega-se de os criar. Se as pessoas considerarem esses empregos inúteis ou mesmo contraproducentes, paciência. Se não querem, têm a pobreza ou mesmo a miséria à sua espera. Parece então que a obtenção de satisfação, logo um sentido de participação e realização, é caso de mera coincidência. Afortunados sejam aqueles que fazem o que gostam e são remunerados por isso. A maioria terá de se contentar com o que lhes é oferecido, quer gostem, quer não.

A proposição do pleno emprego é controladora e hierárquica: vocês não serão pobres, mas o que vão ser, serão à nossa maneira. Percebo, por outro lado, que não seja fácil abdicar das certezas e do rígido planeamento, em prol de uma proposição mais radical face ao desenvolvimento histórico: atribuir um rendimento à priori, que precisamente gere as condições para uma participação no trabalho (remunerado ou não) com mais significado para o próprio e potencialmente mais benéfico para a sociedade. Paradoxalmente, poderá ser esta uma via mais fácil, rápida e lógica para se atingir o dito pleno emprego - aqui mais no sentido de pleno trabalho - do que através da fabricação de empregos num qualquer departamento estatal, longe das pessoas e das suas realidades.

As pessoas querem dar, querem sentir-se realizadas como membros relevantes da sua comunidade. Assumir esse atributo fundamental desfaz o sonho do pleno emprego, tal como atualmente é concebido. Abre-se assim caminho para um mais progressivo e menos intrusivo mundo laboral, em que o rendimento básico incondicional é condição necessária e à priori para a participação, com significado, de cada um na sociedade.

 

1 - Série INE 2011-2015 e Série INE 1998-2010.

2 - "Taxa de desemprego esconde número real de desempregados", Público online, 27 de Março 2015

3 - EAPN, 2014, "Indicadores sobre a pobreza - Dados Europeus e Nacionais", Rede Europeia AntiPobreza - Portugal, Março 2014

4 - Frey, C.B., Osborne, M.A., 2013, "The future of employment: how susceptible are jobs to computerisation?", Oxford Martin School, University of Oxford, Setembro2013

5 - "Impact of automation on developing countries puts up to 85% of jobs at risk", News Oxford Martin School, University of Oxford, 27 de Janeiro 2016

 

por André Coelho (ascmenow@gmail.com)

Membro Activo do RBI Portugal

 

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