Acabei de ver o filme do DeNiro (2015), “Um Senhor Estagiário” e mais um que me agradou deste brilhante actor americano. Realmente este Robert é daqueles que parece que aceita tudo o que se lhe oferece contratar e porventura apesar de alguns só fazerem número, a maior parte da sua carreira foi feita de obras que marcam a vida e gerações.
Ainda há pouco tempo ao contar perante uma tertúlia de amigos as dificuldades que eu tive quando fiquei privado da minha voz pela mutilação da laringe relativamente ao acesso de apoios que procurei conseguir para me ajudarem a relançar no mundo do trabalho, sugeriram-me escrever esta experiência porque talvez entenderam interessante lançar-se ao público reflexão sobre um caso como o meu (alguém que por razões de infortúnio ficou privado da sua mais importante ferramenta de trabalho, sua única forma de trabalhar as suas melhores competências: no meu caso, a voz e a capacidade de me fazer perceber o que diga e Vou certamente publicar em breve algo sobre o enorme desafio que um Laringectomizado como eu sofre apesar de hoje viver num mundo repleto de tecnologias de comunicação, pois apesar de tantos e bons meios ao dispor, os serviços sociais e comerciais, os amigos, vizinhos, familiares e até cônjuges parecem não estarem preparados para comunicarem preferencialmente por escrito)
Mas ao ver este filme sobre um homem reformado e bem na vida, ou seja, alguém com saúde e vitalidade apesar da idade septuagenária, ainda por cima a auferir uma pensão que lhe permite desafogo a ponto de se dar ao luxo não precisar de ganhar mais dinheiro para poder viajar, pagar hobbies caros desde artes orientais até aprender mandarim (…), com boas relações familiares de filhos e netos para se ocupar e visitar, enfadado com nada disto lhe entusiasmar os dias, se viu tentado experimentar trabalhar como estagiário, isto depois de estar reformado atingindo top de carreira em chefias importantes!
Associei este (bom) exemplo a uma das mais frequentes objeções que nós ativistas do RBI sempre nos deparamos quando apresentamos este Direito a um Rendimento Básico Incondicional universalmente atribuído aos cidadãos, que é a ideia que assalta geralmente de súbito todos os que ouvem falar pela primeira vez disto: “então vai-se pagar para as pessoas deixarem de trabalhar, se entregarem ao ócio, se dedicarem à inutilidade... enquanto a produção dos bens essenciais corre o risco de estagnar???”
Tal como eu e tantos sobejos exemplos (muitos por meu conhecimento pessoal), a personagem deste filme demonstra que o facto de viver com um garantido rendimento por direito adquirido, não desmotiva procurar ocupar-se a tentar ser útil, pelo contrário. Certamente impõe escolher algo que lhe agrade o desafio, pois o que na verdade um rendimento básico garante a uma pessoa é não ter de aceitar comprometer seu tempo a favor de uma coisa que não lhe agrade por causa de precisar obter sobrevivência a qualquer custo.
O mundo e os que mandam nele gostam muito de pensar que sabem o que os outros precisam de fazer e nisto até na política, seja a direita como à esquerda, aflige-lhes a ideia das pessoas poderem decidir o que fazer ao seu próprio tempo. O Trabalho é só digno quando por contrato se obedece a regras de patrão e empregado, tudo o resto é esquisito.
Parece que só percebem 2 modalidades:
Se é empresário a missão do Estado é vigiar controlar-lhe os lucros e aplicar-lhe impostos; se é empregado a missão é zelar-lhe pelos direitos e... aplicar-lhe impostos!
Trabalho como o voluntariado, a dedicação a cuidar de outros, a contemplação, a reflexão, a espiritualidade, a filosofia, a carolice, a imaginação artística, etc., são considerados passatempos de luxo tal como o mero descanso – talvez porque não implicam valores de serviço tabelados?
Ter por Direito Humano Universal um RBI, garante sem dúvida a dignidade de qualquer escolha livre feita por cada cidadão, pois não carrega a inevitabilidade da sujeição para evitar a medonha miséria.
Só com uma sobrevivência digna garantida as pessoas têm condições de pensar empenharem-se com as suas melhores competências. Tudo antes disto não é escolha lúcida nem emocionalmente feliz. Sem a certeza dum mínimo conforto, ninguém tem condições para fazer da sua vida uma escolha de Liberdade.
Este é um caminho para tornar a simples existência numa vida digna. Eis algumas das razões para que este assunto se torne central e vital quando pensamos no futuro do bem estar da Humanidade.
Não existe escassez de bens. Antes sim, desperdiçamos cerca de 40%. As pessoas não têm acesso ao dinheiro por não terem acesso ao trabalho, graças à evolução tecnológica e à globalização que leva à procura de países onde a produção seja mais barata, tornando também estas vidas numa nova forma de escravatura.
Sem as preocupações decorrentes de como encontrar dinheiro para as necessidades básicas, o RBI oferece uma via que prima pela autonomia da vida das pessoas:
-sem doenças mentais, crime, pobreza, ódio pelo trabalho que se faz logo baixa produtividade, dá-se oportunidade ao desenvolvimento das infinitas possibilidades de se fazer o que se gosta, aumentando a produtividade real no trabalho, aumentando o tempo de lazer, tempo para criar, cuidar dos filhos e da família, ligar-se ao crescimento espiritual, brincar...
A Finlândia, a Suiça, algumas cidades da Holanda, o Canadá já o começam a praticar ou apostam na sua implementação para breve.
O dinheiro existe, sob a forma de impostos e embrulhado em processos burocráticos, pouco transparentes e pouco éticos.
Cortando a burocracia, a transparência deixa de ser um mito, a eficácia de todo o processo é real porque o apoio chega directamente às pessoas.
Caminhamos para o absurdo impensável pós era-industrial: o trabalho para todos está a escassear. Nesta encruzilhada uma nova via tem de ser pensada.
Quem não tem trabalho sofre para sobreviver. Torna-se excluído, vive com medo e fica doente. Aumenta a pobreza e o trabalho quase escravo. Em simultâneo, uma horda de desempregados excluídos coloca os ordenados dos que trabalham sob uma enorme pressão para baixarem. Os que têm trabalho, efectivamente trabalham horas a mais, para ganhar menos, com medo de perder o seu trabalho para os que lá foram acenam: «estou desempregado e não me importo de ganhar menos». Consequentemente ficam sem tempo para viver, sendo que nem sequer está garantido que produzam eficazmente. Vivem com medo e ficam doentes.
Chama-se a todo este cenário, escravatura, só que os escravos tiveram carta de alforria para morar nas suas casas, ou debaixo da ponte conforme os casos...
De onde vem o dinheiro? Façam-se as contas ao que cada estado gasta de impostos em apenas duas áreas :subsídios sociais e saúde.
Nem falo no dinheiro que vai para alimentar as guerras diversas. Se eu tenho 1000 posso gastar mil e colocá-lo em circulação. Se nada tiver, sou pobre, doente e não posso colocar dinheiro a circular.
Já dizia o outro, "é a economia estúpido"!
Não me vou deixar engolir nem pactuar com a banalidade do mal dos nossos tempos sem questionar. Precisamos colectivamente encontrar respostas porque há outros caminhos. O da coesão e cooperação entre os homens é uma via.
Qual o aspeto do futuro? Ninguém sabe, e é tempo perdido argumentar que se sabe. Mas podemos pensar, até podemos tentar fazer previsões, dentro do risco que estivermos dispostos a assumir. Dizer que o futuro será a colaboração dos comuns, com base num custo marginal tendencialmente zero, numa economia nodal, lateralmente escalada, sustentável e ligada através da Internet [1] parece muito bem, e quero muito que aconteça, mas será inevitável?
Será mesmo de custo tendencialmente zero? O custo de gerar mais uma unidade energética através de um painel fotovoltaico poderá ser próximo de zero, mas e o próprio painel? Quem o paga? Defensores dirão que os painéis fotovoltaicos estão hoje mais baratos do que já alguma vez foram, que economias de escala brutais foram possíveis nos últimos anos e que hoje em dia qualquer pessoa pode comprar painéis fotovoltaicos. Mas será isto verdade? Os painéis estão mais baratos que alguma vez foram, sem dúvida, mas uma pessoa primeiro precisa de comer, de aceder a uma casa, de aceder a alguma forma básica de transporte e energia para cozinhar, iluminar, aquecer-se. Apenas depois de garantir estes mínimos poderá uma pessoa considerar os painéis fotovoltaicos, ou o automóvel elétrico, ou a impressora 3D.
O “futuro”, ao que parece, não poderá ocorrer caso a pobreza não for eliminada. Porque as pessoas pobres – na Europa, 24.4% da população está em risco de pobreza (2014), ou 122 milhões de pessoas [2] - não podem participar na denominada “economia nodal, lateralmente escalada, sustentável e ligada através da Internet” a menos que tenham as suas necessidades básicas satisfeitas. Haverá dúvidas em relação a isso? Então pense nisso. Em muitos lugares, se ficar sem dinheiro para pagar a conta da eletricidade, será mais provável que fique sem eletricidade do que recebê-la de um par de generosos vizinhos que a compraram ou produziram, e ainda menos provável que lhe ofereçam um sistema fotovoltaico com armazenamento para que possa você mesmo produzir essa eletricidade. Onde vivo, pelo menos, não pago a eletricidade e é garantido que ma vão cortar. Não interessa quão generoso, quão criativo, quão tolerante eu possa ter sido na minha vida, a companhia da eletricidade é completamente cega: não paga, terá de se desenrascar sem eletricidade. Ponto final.
As coisas poderão vir a ser diferentes no futuro - e certamente serão – mas de momento o dinheiro tem menos a ver com educação, generosidade, criatividade ou tolerância, e mais com estatuto, ligações ao poder social e domínio/violência. O mérito é um conceito armadilha. No mesmo instante em que atribuo mérito, como alguém valendo, por exemplo, 1000 €, gero automaticamente uma subclasse de pessoas sem mérito. Estas poderão facilmente ser, dentro desta nova categoria, sujeitas a descriminações e violência que até poderei objetar, como privação, pobreza, escrutínio indecente ou vigilância controladora. Portanto definições ou camadas de mérito não podem resolver o problema de fundo da espécie humana contemporânea: a nossa dificuldade em partilhar. Em confiar. É por isto que defendo o Rendimento Básico Incondicional (RBI). Este representa uma afirmação arrojada e clara: que a dignidade humana não poderá estar sujeita a discussões de valor ou mérito. Estas tentativas de quantificar seres humanos estão destinadas a falhar, uma vez que o nosso “valor, se temos mesmo de o referir, é incalculável. Significa: não é possível calcular (portanto nem vale a pena tentar).
O RBI é também uma ferramenta essencial para a participação. Uma pessoa não poderá participar e contribuir para um mundo melhor – digamos pelo investimento num sistema fotovoltaico – se não tem dinheiro para comer decentemente, gozar do conforto básico e segurança de uma casa, aceder à energia elétrica para satisfazer necessidades básicas. É por esta razão que desafios societais imperativos como as alterações climáticas não poderão resolver-se sem eliminar a pobreza. Porque enquanto houver pobreza, as pessoas simplesmente não irão fazer “o que está certo”, quando não o conseguem pagar. Se os custos relativos a viver de uma forma mais sustentável forem superiores ao que a pessoa pode pagar, não há grande escolha senão comer o que for possível, comprar o eletrodoméstico mais barato ou guiar o veículo mais acessível. E todas estas coisas estão entre os maiores poluidores que supostamente estamos a tentar eliminar.
O trabalho em Portugal continua a ser bom para o “preto”. É, em geral, entendido como uma degradação da existência. Noutras paragens os trabalhadores podem estar orgulhosos de viverem do trabalho. Em Portugal, isso é mais coisa de otários. Como dizia o nosso felizmente ex-Presidente da República, o desenrasca é uma boa característica dos portugueses. Isto é: fazem tudo o que for preciso para não organizar o trabalho, sujeitando-se às consequências: a vitória do chico esperto. Aquele que dá ares de ser importante e isso basta-lhe.
Quando o sistema se tornou insustentável começaram reclamar avaliações para tudo, como fazem na Europa, menos para quem dirige as operações. Para esses só mesmo o Ministério Público parece estar disposto a avaliar a legalidade das suas acções. Na Assembleia da República, na comissão de ética, ainda não sabem bem se lhes cabe avaliar politicamente a ética do trabalho de desviar fundos públicos para o sector privado.
O emprego é um privilégio. Trabalhadores em situação de pobreza técnica recebem subsídios do Estado para sobreviverem, na miséria. E ninguém reclama. Os desempregados são tratados como arguidos criminais e ninguém reclama. Trabalhadores são tratados como colaboradores para lhes negarem os direitos anteriormente reconhecidos aos trabalhadores, e há trabalhadores que acham bem: sentem-se mais livres.
Uma das características do país é o reduzido valor que tem o trabalho. Mas esse é um dos maiores consensos que existe, estando os sindicatos reféns desta auto-desqualificação do seu trabalho por parte dos portugueses. Apesar, sem dúvida, do arreganho dos sindicalistas, mais parecem os resistentes da aldeia do Asterix. Quem quer ser trabalhador? Todos preferem um emprego. Muitos o concebem como um privilégio. Como uma forma de estar envolvido nas redes de clientela que minam a sociedade pela inércia.
O Rendimento Básico Incondicional atribuído individualmente, como é regra, dispensará quem não quer trabalhar do fazer. E isso é uma coisa boa. Em vez de a maioria se levantar de manhã a pensar que vai ter de ir para o local de trabalho porque disso depende o seu almoço, todos poderiam fazer um exame de consciência e perguntar-se se querem continuar a sujeitar-se à tortura que é o trabalho em Portugal. E lá onde o trabalho for uma tortura, a libertação desses trabalhadores para uma vida digna, uma vida que valha a pena viver (que eu não sei qual seja mas que cada um terá que descobrir para si próprio), será um passo decisivo para que a sociedade portuguesa, no seu todo, passe a respeitar o trabalho: aquilo que será feito com gosto e disponibilidade para dar sentido à existência de cada um.
O valor monetário do trabalho está em baixa. Mesmo em Portugal que nunca foi alto. O valor monetário do trabalho depende, em grande medida, do valor moral, ético e político do trabalho para a sociedade. Por isso Portugal é dos países do mundo com maior diferença entre os rendimentos dos que ganham mais e dos que ganham menos, sendo os primeiros mais elevados que os seus congéneres de outros países, apesar dos resultados macro económicos serem dos mais miseráveis e que nos deixam na situação periclitante em que estamos. Quando as crianças souberem que não precisam de trabalhar para sobreviver dignamente, com as suas famílias, no dia em que o RBI for política estabelecida, as escolas terão que apresentar o valor dos esforços, físicos e sociais, como forma de intervir no mundo, produzindo sentido para cada um em favor de todos. A arte aos artistas, a ciência aos cientistas, as técnicas aos tecnólogos, os serviços aos empreendedores, os trabalhos de rotina aos computadores e robôs, os cuidados sociais aos terapeutas, para que cada criança saiba que pode colaborar livremente com cada um desses sectores de actividade com a intensidade e o envolvimento que hoje está impossibilitado pelas relações de exploração do trabalho barato, obtido através da ameaça de exclusão social e aniquilação física por falta de meios para morar, vestir, alimentar-se que atinge directamente metade da população portuguesa actualmente.
António Pedro Dores Professor Auxiliar com Agregação do Departamento de Sociologia e do Centro de Investigação e Estudos de Sociologia (CIES/ISCTE-IUL)
O movimento internacional pelo RBI não se forma em partido político pela razão que apenas defende uma causa. Não pretende abranger mais nada que o simples direito básico dum rendimento incondicional. Outras causas, outros valores, outros princípios, outras lutas sociais não se misturam nem confundem com isto.
A sobrevivência deveria ser um Direito básico incondicional. É indiscutível que se deve defender a dignidade do direito incondicional da sobrevivência. Até aos presidiários mais desprezados da sociedade não se nega.
No século XX, o último do milénio II d.C., a maioria das nações constitucionalizaram os primeiros direitos incondicionais como a Educação e a Saúde Pública, sendo que o desejo duma Justiça igual para todos já vinha sendo secularmente afirmado na Lei da universalidade (todos se sujeitam à mesma Lei, todos sujeitos à mesma Justiça – ainda não é uma realidade na prática, mas seu sentido é irreversível).
A sobrevivência, porém essa foi deixada ao acaso, largada ao destino de cada individuo lhe coubesse lutar. Crê-se que é uma responsabilidade individual, um fado pessoal sob a desatenção da irresponsabilidade coletiva. As ideologias divididas em alas, a Direita e a Esquerda,defendem que a sobrevivência é uma conquista pelo mérito: seja pelo direito da propriedade (dinheiro e outras posses de valor) seja pelo trabalho (a remuneração que se ganha), como se fosse normal a livre escolha entre um costume de passar fome, sede, frio e o conforto, quando há o necessário para todos. Como se alguém tivesse o direito de fazer passar mal os seus que dependem de si, por opção.
Não é ambição comer para saciar a fome, não é ambição beber para saciar a sede, não é ambição agasalhar o corpo para proteger do frio, não é ambição calçar os pés para não os magoar no andar, não é ambição procurar um espaço próprio suficiente para privar sozinho ou com os seus. A ambição começa a contar só a partir da mais básica condição, não enquanto se vive no risco de perder a vida.
Entre os defensores do RBI por todo o mundo, as soluções e formas de o garantir que sugerem são variadas. Não há portanto um modelo de financiamento único e consensual, nem sequer sobre o valor. Aliás o valor não interessa porque as realidades de cada país e região são bastante diferentes, a começar pelas diferenças de riqueza entre os países até mesmo dentro da Comunidade Europeia, por exemplo.
Há quem como eu acredite que um dia o mundo não vai precisar de dinheiro para fazer circular e distribuir os bens e serviços, nem sequer para os avaliar. Talvez ainda estejamos distantes dessa Era que já não use o dinheiro para avaliar as coisas. Por isso, se de facto é o dinheiro a ferramenta que faz gerir a economia, não se perca tempo em distrações perversas, ingénuas ou hipócritas que adiem a execução deste Direito: Rendimento Básico Incondicional – o direito humano de economia.
Outros direitos universais e incondicionais consagrados na história foram muito mais arrojados e aventureiros na implementação que o R.B.I., como a Saúde Pública e a Educação Básica Obrigatória, por exemplo.
Não quero a razão, cada cidadão é dono da razão, e desejo que cada pessoa continue com a sua razão e motivação, e que a única razão seja viver com a razão que cada um tem. Apenas quando respeitamos os outros podemos exigir respeito e nunca o inverso, mas o inverso costuma ser regra.
Estou convicto que possamos juntos sem radicalismos, convulsões ou até revoluções mudar a nossa mentalidade e conseguir aquilo que muitos ansiamos: alterar o rumo para melhor. Como a nossa democracia apenas permite alternância e não alternativas, vamos propor com a nossa convicção o Rendimento Básico Incondicional na discussão pública e pressionar a sua implementação.
A minha motivação máxima será, com a ajuda dos leitores, ajudar a construir um Mundo diferente, um Mundo melhor, pois pior já há muitas pessoas por aí a tratar disso. Se conseguirmos juntos acreditar que é possível já valeu a pena.
O facto de esta ideia estar a ser vinculada em cerca de três dezenas de Países da Europa e muitos outros pelo Mundo e existirem implementações localizadas com enorme sucesso social e económico mostra que vale a pena acreditar. Esta ideia ser divulgada e pressionada à discussão e à consequente implementação não depende só de nós os dois, mas será um pequeno impulso que se tornará grande se conseguirmos fazer o efeito de “bola de neve”.
Ter noção que a tarefa não é fácil, mais difícil a tornará. Manter as ideias tradicionalistas tal como nos são impostas por quem lhe interessa manter o rumo dos acontecimentos (todo o espectro politico) não ajuda.
O RBI não está na ordem do dia e só a nossa vontade de criar uma sociedade melhor e mais digna pode levar a alterar esta realidade. O RBI tem vários passos e dar, um de cada vez, mas o mais fundamental é a divulgação, para poderemos ter sucesso nos passos seguintes.
Não estamos sozinhos. Em Portugal e na Europa cada vez mais pessoas conhecem e abraçam esta solução, tudo tem o seu tempo certo, e o nosso é hoje.
A hipótese: o rendimento básico incondicional (RBI) não foi implementado na África do Sul em parte porque as pessoas em lugares de poder não largam o seu interesse e capacidade para explorar as pessoas.
O artigo abaixo tenta demonstrar a validade desta hipótese.
Comecemos com algum historial. O RBI não é uma ideia nova na África do Sul. De facto, existe uma análise económica detalhada para a implementação do RBI desde 2004. Este documento deriva do trabalho de reconhecidos economistas, especialistas na área, cujos resultados foram sintetizados no que ficou conhecido como a Comissão Taylor (Taylor Committee). A Aliança para o RBI (Basic Income Coalition, constituída pelas instituições Black Sash, COSATU e SAAC), usou estes resultados para provar que o RBI é viável, ou pelo menos que deveria ser testado, na África do Sul.
Passaram-se mais de 10 anos e no entanto nada semelhante ao RBI foi implementado ou sequer testado. Porque não?
Não é por falta de necessidade: 54%1 dos Sul Africanos - mais de 29 milhões de pessoas - vivem abaixo da linha oficial de pobreza do país, e mais de 40% da força de trabalho está desempregada2. Além disso, de acordo com o relatório do BIG Financing Reference Group, também não é por falta de fundos:
"O RBI é uma opção economicamente viável para a África do Sul. Embora os quatro economistas [Economic Policy Research Institute (EPRI), Prof. Pieter le Roux, Prof. Charles Meth e o Dr. Ingrid Woolard] apresentem custos líquidos ligeiramente diferentes para o RBI, representando transferências para os pobres de diferentes quantias, houve um consenso de que o RBI é viável sem necessitar de aumentar a despesa governamental".
No entanto, o mesmo relatório refere também que decisores governamentais acreditam que o RBI não consegue combater a pobreza. Recusaram sistematicamente considerar o RBI, embora sabendo que os atuais programas de assistência social não conseguem cobrir mais de 50% daqueles vivendo abaixo da linha oficial da pobreza, ou seja cerca de 15 milhões de pessoas. Estes mesmos decisores têm reiterado que o RBI não seria eficaz, mesmo face à demonstração pela Comissão Taylor de que o RBI é a melhor forma para diminuir ou mesmo erradicar a pobreza no mais curto intervalo de tempo. Ignoram também a receita fiscal e as poupanças possíveis na segurança social com a implementação do RBI, com a consequência de duplicar o seu custo líquido de 24 milhões de ZAR por ano (1.35 biliões de euros por ano), conforme calculado pela Comissão Taylor. Resumindo, muitos decisores governamentais ignoram completamente estas análises muito consistentes e pormenorizadas da Comissão Taylor. Porque será?
Bom, a resposta poderá encontrar-se no tipo de estrutura económica da África do Sul. O setor privado conta com cerca de 80% da economia do país3. O salário mediano é 3036 ZAR/mês (171 €/mês)4, o que é baixo em comparação com os padrões Europeus. Pegando no Reino Unido como referência, a seguinte tabela pode ser compilada (Tabela 1).
Tabela 1 - Relações de rendimento, África do Sul / Reino Unido
A relação entre o rendimento mediano e o custo médio de vida é consideravelmente mais elevado no Reino Unido que na África do Sul. Além disso, a razão entre o rendimento mediano e o rendimento mínimo oficial é também bastante mais alta no Reino Unido. De facto, enquanto o rendimento mediano no Reino Unido está acima do rendimento mínimo (como deverá ser), tal não é o caso da África do Sul: mais de metade dos Sul Africanos recebe rendimentos abaixo da linha oficial da pobreza. Finalmente, como se pode observar no gráfico abaixo, a distribuição de rendimentos na África do Sul está claramente desviada para a extremidade dos rendimentos baixos, enquanto que no Reino Unido os rendimentos estão bastante mais espalhados em torno do centro (Figura 1 e Figura 2).
Figura 1 - Distribuição de rendimentos na África do Sul4
Figura 2 - Distribuição de rendimentos no Reino Unido5
Estes dados mostram uma economia Sul Africana empobrecida em comparação com outra como a do Reino Unido, economia essa dependente em grande medida de mão-de-obra mal remunerada e com baixas qualificações6. Esta situação é melhor mantida quando um vasto número de pessoas pobres e dependentes estão sedentas de emprego na economia. Dada a sua situação subserviente, estes milhões de pessoas irão naturalmente aceitar salários baixos e condições de trabalho precárias que de outra forma poderiam não aceitar. Irão também não ter acesso à maior parte da escolarização e educação superior, que lhes poderia fornecer mais capacidades e permitir-lhes candidatar a outros empregos ou iniciar os seus próprios negócios. Isto é conveniente a grandes corporações, que como se sabe praticam o lobby e financiam políticos e governos para que estes protejam os seus interesses, dando-lhes estes últimos acesso a mão-de-obra barata e leis ambientais mínimas. O Acordo de Parceria Transatlântica de Comércio e Investimento (conhecido por TTIP), por exemplo, constitui apenas o reconhecimento formal dessa atitude de dominância por parte das grandes corporações sobre os governos e povos em geral.
Existe uma ligação entre os interesses corporativos e as políticas governamentais. Além disso, a implementação de um RBI seria, basicamente, contrário aos interesses das corporações: o RBI iria tirar milhões de pessoas da pobreza, dando-lhes poder suficiente para recusar condições exploratórias de trabalho, iniciar negócios por conta própria, investir em educação e melhorar as suas vidas - privando as corporações do seu imenso saco de mão-de-obra barata. Os decisores governamentais poderão também mostrar comportamentos baseados em ideologia ou preconceito, mas o patrocínio corporativo sobre os assuntos políticos não deverá ser descartado, dada a profundidade e longevidade da sua negação (relativamente a políticas progressivas como o RBI).
1 - World Development Indicators - Poverty headcount ratio at national poverty lines (% of population), 2010
2 - Numa definição mais rigorosa e expandida de desemprego, incluindo os chamados "desempregados desencorajados", de acordo com a referência A.
3 - World Development Indicators - General government final consumption expenditure (% of GDP) = 20.3. Portanto, a despesa total não-governamental (privada) (% do PIB) = 79.7
6 - Profissionais com mais habilitações são normalmente pagos o salário mediano ou acima deste, pelo que uma distribuição como mostrada na Figura 1 deverá estar relacionada com uma elevada proporção de mão-de-obra com baixas qualificações.
Duas mães solteiras licenciadas em ciências sociais concorrem a um posto de trabalho. Uma delas fica com o emprego mas a outra continua sem rendimentos. Recorre aos apoios do Estado para se manter, e ao seu filho. É visitada pela mãe solteira que ficou com o trabalho. Cabe-lhe verificar se a sua colega está em condições de receber os apoios sociais condicionados: será que os seus pais a podem sustentar? Terá ela algum companheiro que não quer apresentar? É suficientemente diligente com os cuidados parentais ou é preciso retirar-lhe a criança para evitar correr riscos? Além da depressão geral de que todos sofremos por vivermos em sociedades tão estúpidas como estas, a mãe solteira desempregada sofre de alguma doença que a incapacite de cumprir os seus deveres maternais?
Qual é a diferença entre estas duas mães solteiras? Nenhuma está nas melhores condições para cuidar da educação da sua criança. Uma porque tem de dar prioridade ao trabalho. A outra porque está inquieta quanto à sua situação precária. E nenhuma está em condições de se solidarizar com a outra, mesmo estando as duas numa situação muito semelhante.
O trabalho organizado em função da liberdade patriarcal não protege as mulheres e mães: recusa-lhes a possibilidade de prosseguir carreiras, de toda a vez que querem ter filhos, e recusa-lhes pagamento igual para trabalho igual quando estão a trabalhar, porque podem ter filhos. Desconsidera a possibilidade de serem abandonadas ou querem escapar aos pais das suas crianças, presumindo que isso não ocorre se as mulheres escolherem bem os respectivos companheiros (não foi isso que disse a juíza do caso que opõe Bárbara Guimarães ao político seu ex-marido?).
As mulheres com filhos e em situação precária (uma parte importante da muita pobreza que grassa pelo país, caracterizada por 1/3 de crianças que chegam à escola com fome) podem aspirar superar essa situação através de um emprego, que as vai subtrair ao convívio dos seus filhos. Nalguns casos, essa superação faz-se contra outras mulheres que estão na mesma situação mas a quem a oportunidade não sorriu. Quando se encontram face-a-face são incapazes de reconhecer como estão, praticamente, na mesma situação. Uma porque o seu emprego a leva a penalizar e culpabilizar a mãe solteira assistida, desconfiando da sua boa-fé. Outra porque não pode deixar de sentir a opressão que a visita da profissional dos serviços sociais imprime na sua vida.
Vamos acabar com isto! Direito à dignidade é também direito à libertação da empatia, ao reconhecimento da nossa mútua igualdade, apesar das circunstâncias poderem ser momentaneamente diferentes.
Um Rendimento Básico Incondicional impediria o encontro de ambas em circunstâncias de oposição e de opressão. Ainda que uma arranjasse emprego, não seria obrigada a desconfiar da outra. Talvez tivesse até oportunidade de estimular a mulher sem emprego a ajudar voluntariamente no trabalho de denunciar a opressão de que as mães solteiras, apesar da conversa politicamente correcta, continuam a ser alvos. Talvez pudessem partilhar o horário dposto de trabalho e, cada uma, ter mais tempo e disposição para cuidar das respectivas crianças. Talvez fizessem amizade e partilhassem entre si algumas tarefas parentais, arranjando mais tempo para si, sem colocar em risco o tempo de qualidade vivido com as crianças. Talvez se lembrassem de construir um geniceu, onde várias mulheres em circunstâncias semelhantes pudessem organizar a ajuda mútua, sem riscos de inanição que hoje correm.