Pão, Circo e Dinheiro de Helicóptero
Na antiga cidade de Roma o imperador nunca estava seguro. A miséria e o ócio do povo ameaçavam sempre agitar as ruas e trazer traições, golpes ou revoluções.
O poder abordou o problema com subtileza. Para disfarçar o ócio decidiu oferecer jogos ao povo. Para mitigar a miséria, dar-lhe pão.
E assim foi. Paralelamente à organização dos espalhafatosos circos de leões e gladiadores, as autoridades romanas mantiveram ao longo de séculos um outro programa, mais discreto, de distribuição, quase sempre gratuita e incondicional, de trigo (pontualmente também de outros alimentos) muitas vezes em quantidades precisamente calculadas para garantir uma base alimentar suficiente a todos 1
Grandes parcelas da capacidade económica e administrativa do império foram empregues nestes programas. Para alimentar a população da enorme cidade o cereal tinha que ser transportado desde regiões produtoras distantes, com logísticas complexas, riscos grandes e custos altíssimos. Um estudo actual calcula que só este transporte poderia custar per capita o equivalente ao dobro do valor do salário de um trabalhador romano não qualificado. Isto significaria que, na Roma daquela época, menos de 1/3 do rendimento de um trabalhador comum viria do seu trabalho, em dinheiro; e mais de 2/3 já lhe estaria previamente assegurado, em espécie, pelo simples facto de estar vivo e ser romano (e ser também, por isso, uma potencial ameaça ao status quo)!
Naquela sociedade, muito menos monetizada do que as de hoje, isto equivaleria de forma extraordinariamente próxima à ideia actual de um Rendimento Básico Incondicional (RBI) em dinheiro, no formato conhecido por “dinheiro de helicóptero” 2 Um e outro são mecanismos de oferta incondicional de elementos básicos de subsistência a populações, por parte de poderes que mantêm para si o controlo sobre esses mesmos mecanismos.
Sucede que nos dias de hoje a automação progressiva do trabalho ameaça já, e cada vez mais, sujeitar novamente povos inteiros à miséria e ao ócio. E, tal como antes em Roma, também agora a miséria e o ócio do povo acabarão por fazer temer o poder. O que fará, então, este poder ameaçado para se segurar? Lançar “dinheiro de helicóptero” será uma solução óbvia.
1. A história deste “subsídio do grão” inicia-se em Roma em 123 a.C., ainda no tempo da República, como uma política populista de subsidiação do preço do trigo. A partir do ano 58 a.C. a medida evoluiu no seu conteúdo e no seu objectivo, para o fornecimento gratuito de trigo e de outros alimentos como forma de controlo da população. Manteve-se este tipo de distribuição, por vezes condicionada e por vezes totalmente incondicional, até à queda da cidade e do império.
2. “Dinheiro de Helicóptero” foi uma expressão usada por Milton Friedman para ilustrar uma hipótese de política monetária. A expressão, e particularmente a imagem para que remete, assenta bem e tem sido utilizada como referência a modelos de RBI oferecidos “de cima para baixo”, por um qualquer poder - político, monetário ou económico - ao povo, passivo no processo.
Enquanto durar, isto terá benefícios efectivos para os mais carenciados. Permitirá que se alimentem melhor, que se preocupem mais com educação e saúde, talvez até que comecem a pensar no seu futuro.
Mas, além destes mais carenciados, muitos dos outros iriam também gostar de somar este dinheiro “caído do céu” àquele que já têm de outras fontes. Não parece é muito plausível que, para a maior parte, este hipotético rendimento acrescentado pudesse significar algo muito diferente de um incentivo mais para se entregarem ao “circo” do consumo supérfluo, alheando-se entretanto, mais ainda, da política e da construção da sociedade. As próprias “passagens do helicóptero” funcionarão como um sinal para as pessoas “no solo” de que alguém estará já a cuidar de tudo isso por elas.
Este era o propósito e terá sido o efeito - pelo menos periodicamente - da política de “pão e circo” em Roma. É preciso admitir que, independentemente do seu propósito, venha também este a ser o efeito de uma política de “dinheiro de helicóptero” hoje. E mais uma vez, isto nem é necessariamente contrário à vontade de muitas das tais pessoas “no solo”, tantas delas já apoiantes da ideia de um RBI pela simples expectativa de um acréscimo de rendimento para mais algum consumo e, portanto, “qualidade de vida”, de acordo com o estereótipo dos anúncios de televisão.
Mas de facto, um RBI assim, lançado “de helicóptero”, poderá muito bem vir para ser uma espécie de “pão e circo” moderno, mais amigo de certos poderes do que da maioria das pessoas. Convidá-las-á a viver de olhos pregados no céu, à espera da próxima chuva de dinheiro. Um dia, um atraso, uma mudança de rota, o discurso de um político qualquer, suscitará entre elas a insegurança: e se o helicóptero deixar de vir?
O sentimento será justificado. Só o poder ao comando do helicóptero poderá decidir se ele voa, onde voa, como e quando voa. O povo estará na mão deste poder. Estará na situação do leão capturado na selva e trazido para o zoo: pode ter por agora a subsistência assegurada, mas perdeu a liberdade.
Avaliar a virtude de um qualquer modelo concreto de RBI depende de mais do que das contas para saber se vem mesmo somar rendimentos a todos ou não. Não nos bastará saber se o imposto que passaremos a pagar a mais vai ser maior ou menor do que o valor do RBI que iremos receber, ou se os cortes a fazer na segurança social valem, para os cidadãos que neles perdem apoios, mais ou menos do que aquilo que passarão a ganhar.
A virtude de um qualquer modelo concreto de RBI dependerá também, muitíssimo, do grau de controlo que reserve às pessoas comuns sobre os mecanismos do seu funcionamento; da segurança que lhes dê de vir para ser uma garantia de rendimentos básicos de que nenhum poder ou interesse particular se poderá servir ou apropriar; e de que essa garantia será futura e não apenas presente. Só um RBI assim será libertador e efectivamente dignificante para todos.
A ideia de um RBI assente sobre uma base construída e controlada pelas pessoas, em vez de sob a vontade egoísta e auto-protectora do poder dos seus imperadores, seria talvez prematura no tempo da velha Roma. Ainda o será no séc. XXI?
Miguel Horta