Emprego Garantido (EG) vs Rendimento Básico Incondicional (RBI)
Emprego Garantido (EG) vs Rendimento Básico Incondicional (RBI)
Há estudos (Gallup World Poll) que indicam uma correlação entre a situação de desemprego e uma relativa redução na felicidade dos indivíduos. Numa aceção simplista, concluiríamos imediatamente que o que precisávamos de fazer era atribuir empregos a toda a gente, problema resolvido. Mas uma escolha apressada deste género não avalia corretamente a situação, nem as alternativas, pecando por defeito e podendo até ser contraproducente.
Estes estudos indicam que, para além da questão óbvia do rendimento, os empregos parecem ser uma fonte de significado e de valor próprio para as pessoas. Isto aparentemente só reforça a conclusão acima, pelo que tudo indica que o EG é a política do futuro e que a deveremos implementar sem mais demoras.
Mas calma.
Primeiro, pensemos um pouco no porquê da relativa maior felicidade dos indivíduos empregados, comparando com os desempregados. Uma parte da resposta terá a ver com o estigma. É que, numa sociedade emprego-dependente como a nossa, estar desempregado é, incontestavelmente, uma fonte estigmatizante. Não tem emprego porque não é capaz, porque não tentou o suficiente, porque não tem formação suficiente, porque tem problemas de relacionamento social, por toda uma panóplia de razões, reais ou percecionadas. Dê-se a volta por onde for, a culpa é do próprio. Que o desemprego estrutural está a aumentar sistematicamente por via da automação e outros fatores, que os salários baixam de tal maneira que as pessoas simplesmente desistem, que a precariedade veio para ficar, que as condições de trabalho são degradantes física e/ou psicologicamente…são tudo desculpas circunstanciais de quem não quer trabalhar, ponto final. Se ainda é necessário fazer prova do argumento, os reformados não se apresentam relativamente tão infelizes quanto os desempregados, embora também não tenham emprego (Clemens Hetschko et al., 2012[1]). Porquê? Porque a reforma é socialmente aceite; é esperado que após décadas de válida contribuição num emprego, a pessoa possa finalmente descansar e com toda a liberdade nada fazer (se assim o desejar). E, claro, receber ajudas do Estado para colmatar a situação do rendimento não resolve a situação. Nomeadamente porque o estigma continua lá: agora a pessoa tem de demonstrar que é manifestamente incapaz de obter o seu próprio rendimento. Já não bastava o estigma de estar desempregado; sobre esse há ainda o estigma de receber uma “esmola” para conseguir sobreviver.
O que está aqui em causa, e, novamente, para além da mera questão do rendimento, é que existe uma cultura assente no emprego como fonte de significado e valorização, pelo que a falta do mesmo é vista como um problema. Isto, claro, sem falar da não-menos importante questão do rendimento, cuja falta com certeza representa particular fonte de infelicidade para os indivíduos. Portanto, a relativa infelicidade dos indivíduos desempregados face aos empregados é evidente no âmbito da cultura existente, e não necessariamente fora desta. Isto porque o RBI poderá – e alegadamente irá – criar condições em que tal ligação não existe. Garantir empregos a toda a gente, neste primeiro sentido, não gera necessariamente melhores condições de felicidade aos indivíduos que a implementação do RBI, pela simples razão de que o ambiente cultural em redor do trabalho se altera por completo.
Em segundo lugar, é errado assumir que todas as pessoas querem empregos, no sentido tradicional do termo. E atenção, isso não implica de forma alguma que essas pessoas não queiram contribuir com o seu trabalho. A comprová-lo estão todos aqueles que, apesar da necessidade imperiosa, na sociedade atual, de ter um emprego para conseguir sobreviver, ainda conseguem (com grande esforço, por vezes) ter tempo e energia para desenvolver trabalho voluntário. Portanto, e para quem tem dificuldade em imaginar que estas pessoas existem de facto, não restam dúvidas de que os empregos não são necessariamente uma fonte de significado e autoestima na vida humana, detalhadamente evidenciado num estudo informal desenvolvido por Robin Chase (conforme apresentado num artigo de Kate McFarland).
Em terceiro lugar, julgo não ser propriamente necessário listar a crescente quantidade de empregos geralmente tidos como pouco atraentes, monótonos, pouco desafiantes e sem quaisquer perspetivas de evolução, recentemente apelidados de “bullshit jobs”. Não se entende propriamente o intuito de ter pessoas empregadas em algo que não lhes interessa, do qual não extraem satisfação, desadequadas ao seu perfil, que não lhes permite pôr os seus talentos em prática e que lhes retira tempo de vida crucial, apenas com o intuito de lhes atribuir um rendimento. Se esses empregos não são necessários, que sejam eliminados. Se são necessários, então que se automatizem; se não for possível, que se pague mais a quem a quem estiver disposto a aceitá-los.
O EG será apenas benéfico para aquelas pessoas que procuram um emprego – um emprego qualquer, admite-se já em desespero de causa - e não o conseguem encontrar. Para aquelas atualmente confortavelmente empregadas seria inócuo e para aqueles que preferem não estar empregados (estando ou não atualmente empregados), para conseguir trabalhar nas suas paixões e talentos, seria apenas sofrimento e perda de tempo.
Por seu turno, o RBI ou é benéfico, para todos aqueles que preferem não estar formalmente empregados e aqueles que não estão felizes no seu emprego, ou inócuo, para aqueles que estão satisfeitos com o seu emprego. O RBI será ainda benéfico para os atuais desempregados, oferecendo-lhes a possibilidade de contribuírem com o seu trabalho informalmente e/ou desenvolverem capacidades para se integrarem em empregos mais adequados ao seu perfil e preferência.
Numa acessão mais fina, portanto, parece que o RBI será afinal a estratégia que mais irá potenciar a felicidade das pessoas, no que diz respeito à relação com o trabalho.
Ainda será de notar a componente organizativa bastante mais complexa e potencialmente mais controladora do EG. Para garantir o emprego, portanto, o Estado tem de o criar, já que o mercado aparentemente está a destruí-lo. Ora para tal há que, primeiro, inventar trabalho, e depois distribuí-lo pelas pessoas que terão, supõe-se, de o aceitar realizar. Haverá que realizar um esforço de catalogar as capacidades de cada um, para estabelecer a ligação entre cada um e o dito emprego a criar. Parece uma tarefa hercúlea, e potencialmente muito burocrática (na sequência do que o nosso Estado nos tem vindo a habituar). Mesmo admitindo que o Estado consegue criar os ditos empregos e colocar todas as pessoas nos mesmos, depois teria de garantir que estas se mantinham nesses empregos. Ou pelo menos garantir a criação de um novo emprego sempre que alguma pessoa queria ou tinha de mudar. Talvez tudo isto seja desnecessário.
O RBI, por outro lado, e como não impede ninguém de trabalhar, possibilita a cada um iniciar o trabalho que pretende fazer. Ou, se por qualquer motivo não o conseguir (ou não quiser seguir essa via), dá-lhe a possibilidade de ganhar formação e conhecimentos para obter o emprego que mais o satisfaz. Com o tempo, o RBI irá efetivamente pôr todas as pessoas a trabalhar, de uma forma ou de outra, pois cada uma quer contribuir para a sociedade, dada a oportunidade. Acontece que o sistema atual impede muita gente de trabalhar, precisamente devido à obrigatoriedade de ter um emprego – um emprego qualquer, mesmo que deixe a pessoa doente – para conseguir sobreviver.
Trabalhar em algo com significado e alinhado com os valores de cada um irá constituir um ambiente radicalmente diferente do que existe atualmente. A confiança depositada nas pessoas para fazerem da sua vida o que melhor entenderem irá alterar por completo o mundo do trabalho, para melhor, ao contrário do EG, que só irá forçar ainda mais a imposição da cultura do emprego atualmente em vigor.
[1] Clemens Hetschko, Andreas Knabe, Ronnie Schöb, “Identity and wellbeing: How retiring makes the unemployed happier”, CEPR VOX, May 4 2012
André Coelho
Engenheiro / engineer: Ecoperfil, Sistemas Urbanos Sustentáveis Lda.
Músico / musician: Contaminado, MPex
Ativista / activist: RBI Portugal (+ blog RBI), Architects and Engineers for 9/11 Truth, Basic Income News