Novembro de 2017. O Rui e a Ana partem de Lisboa rumo a Bragança. Viajam de carro, ao volante vai o Rui. Com o passar das horas o Rui sente-se cansado e pede à Ana para conduzir. Esta recusa fazê-lo, dizendo que prefere ver as paisagens. O Rui acusa-a de ser preguiçosa e de se estar a aproveitar do seu esforço sem nada fazer para o merecer. Terá razão?
Novembro de 2018. Voltam a Bragança. O carro em que agora seguem já é capaz de se conduzir por si mesmo, com total segurança e conforto. Apesar disso o Rui, por gostar de guiar, por achar que os humanos não se devem entregar às máquinas ou por qualquer outro motivo pessoal, desliga o computador de bordo, pega no volante e leva o carro. Acaba novamente por se sentir cansado e por pedir à Ana que partilhe consigo a condução. A Ana volta a recusar-se, afirmando querer contemplar as vistas. Mais uma vez, o Rui acusa-a de ser preguiçosa e de se estar a aproveitar do seu esforço sem nada fazer para o merecer. Terá razão agora?
São hoje muitos os que não concedem que pessoas jovens e saudáveis possam escolher não trabalhar e ainda assim viver com dignidade material garantida. Terão razão? Se têm, que razão é essa exactamente, neste momento da História em que o trabalho humano se torna mais desnecessário a cada dia que passa?
O mais provável é que, quem leu as linhas atrás, tenha reprovado a recusa da Ana em conduzir o carro quando este ainda tinha de ser conduzido, mas não a sua recusa em conduzir o que já não tinha. É lógico: no primeiro caso, a preguiça da Ana obrigou o seu companheiro de viagem a um esforço suplementar; no segundo caso não o obrigou a nada.
Porque não mudam então também o seu juízo os críticos da possibilidade de se viver com dignidade material sem se trabalhar, nesta transição de um passado em que o trabalho de cada um fazia falta a todos, para um futuro em que a maior parte desse trabalho não terá já utilidade nenhuma para ninguém além de, porventura, o próprio?
Mudanças de mentalidades, como esta, demoram. É-nos mais fácil acolher as tecnologias novas do que abandonar as ideias velhas. E estas são as duas forças em choque nesta difícil transição.
Mas o futuro virá ainda assim. E se no passado preguiçosas eram as “anas” que preferissem contemplar as paisagens a guiar os carros, no futuro, os preguiçosos hão-de ser os “ruis” que permanecerem agarrados ao conforto de manter tudo como sempre foi e se recusarem aos desafios e dificuldades da mudança.
O movimento do decrescimento teve origem nos anos 1970 no pensamento pós-desenvolvimentista e nos trabalhos de economistas desalinhados das correntes hegemónicas da economia ocidental, nomeadamente de Nicholas Georgescu-Roegen (que é considerado o proponente do termo decrescimento e introduziu o conceito de bio-economia) e dos membros do chamado ‘Clube de Roma’ que publicaram o famoso relatório ‘The limits of growth’ (1972). A transformação daquele pensamento num movimento mais consistente acontece apenas nos anos 2000, principalmente em França, como resultado dos trabalhos de economistas e ecologistas políticos como Serge Latouche, Paul Ariès, Vincent Cheynet e Joan-Martinez Alier. O termo decrescimento surge como um slogan político que traduz uma crítica radical à ideologia do crescimento económico baseado no consumo compulsivo e no produtivismo industrial que aqueles autores consideram estar na origem das crises ambiental (alterações climáticas, extinção de biodiversidade, destruição de ecossistemas, ultrapassagem de limites geofísicos) e social (desigualdade de distribuição de rendimentos, desequilíbrios Norte-Sul) à escala global. Os decrescimentistas atribuem à ‘Religião do Economismo’ uma visão enviesada e insustentável que baseou a robustez da economia e o bem-estar social num crescimento económico medido por indicadores distorcidos, como o PIB, e assente na externalização dos custos ambientais. O movimento põe em causa o (hiper)consumismo, a mercantilização, a globalização destrutiva e o sistema financeiro desregulado, por considerar que conduziram ao esgotamento irreversível de recursos e à destruição ambiental. As ligações entre o modelo económico e a crise ambiental têm sido aliás defendidas por inúmeros pensadores e activistas – p.ex. Hervé Kempf (Para salvar o planeta livrem-se do capitalismo, 2009), Naomi Klein (This changes everything, 2015), Richard Heinberg (The end of growth, 2011) e até o Papa Francisco na encíclica Laudato Si (2015). Segundo os partidários do decrescimento, os pilares em que assenta o sistema económico são o acesso a fontes de energia barata (combustíveis fósseis), a disponibilidade de crédito e o endividamento, a obsolescência programada e a publicidade/marketing, que geraram sociedades viciadas em consumo e desperdício. A crítica radical dos mitos da modernidade - o desenvolvimento, o progresso tecnológico, a abundância derivada da inovação mercantil, a felicidade material – não é nem saudosista, nem anti-civilizatória. O movimento propõe uma desaceleração progressiva dos ritmos de produção e consumo e uma redefinição do bem-estar baseada na frugalidade e simplicidade voluntárias, e na valorização dos bens relacionais e da convivialidade. Alguns autores têm proposto conjuntos de medidas concretas que não cabe aqui detalhar, mas que incluem a relocalização das actividades económicas, a aposta em cooperativas e na agricultura familiar, a promoção de actividades económicas com efeitos ambiental e socialmente benéficos ou a promoção de formas de democracia participativa (ver p.ex. livro de S. Latouche referido abaixo). O decrescimento propõe em suma aquilo que apelida de uma utopia concreta e uma revolução serena: uma nova ética de responsabilidade dos seres humanos entre si, presentes e futuros, e na sua relação com os restantes seres vivos e ecossistemas dos quais dependem.
A abrangência do programa político do decrescimento parece-me fornecer o contexto adequado para o lançamento duma proposta de RBI e aproxima-se na sua essência dos principais desideratos dos seus proponentes: a reapropriação colectiva dos comuns, a dignificação e re-humanização do trabalho, e a mitigação do desemprego, da precariedade laboral, da pobreza e das desigualdades. Mas mais importante ainda, a contextualização do RBI no âmbito duma agenda decrescimentista impediria que se consumassem as derivas liberais apontadas por alguns dos críticos do RBI, como a destruição do Estado Social e a promoção do consumismo. Em 2016 foi aliás organizada uma conferência internacional em Hamburgo para promover o diálogo entre os dois movimentos (https://ubi-degrowth.eu/). Creio que a promoção de um amplo movimento de base democrática que reúna as propostas do decrescimento com uma versão progressista do RBI tem sérias hipóteses de inflectir o rumo actual das sociedades do Norte global numa via conducente a uma sustentabilidade ambiental, económica e social, credível e duradoura.
III - Como criar esperança nesta época de mudança que vivemos?
No ocidente, observa-se o fim do crescimento e o declínio da classe média, juntamente com o crescimento da pobreza e o envelhecimento demográfico. Do ponto de vista financeiro, vive-se uma viragem para a moeda virtual, com o auxílio das novas tecnologias de informação e os efeitos de desintegração social associados.
A imaginação dos povos acompanha as transformações práticas da vida, cujos ciclos de crescimento e destruição são cada vez mais curtos e sectoriais, à medida que as vidas das pessoas se alongam e as experiências de vida se trocam através dos processos de globalização e de mobilidade social descendente. A imaginação e o conhecimento transformam-se de unitários (de classe ou nacional) em caleidoscópicos, como descobriram os pós-modernos.
Poder-se-ão encontrar padrões fractais capazes de ajudar a compreender a vida, a partir das novas experiências sociais metropolitanas e em rede e das novas potencialidades bio-info-tecnológicas? Saberão as sociedades integrar as ciências ecologicamente convergentes no novo mundo que se anuncia como senhor de novas condições climatéricas?
O neo-liberalismo, cioso dos preconceitos economicistas centrados na adoração do mercado, tem procurado menorizar o valor da crítica social. A teoria social, em (má) reacção, encapsulou-se num estado pré-paradigmático, como se dizia nos anos 70, entre as actividades culturais e as ciências propriamente ditas. Defendeu-se e resistiu fechando-se, como os representantes dos trabalhadores o fizeram, em torno do compromisso do Estado Social, na esperança da derrota política do neo-liberalismo permitir voltar ao crescimento económico, como se isso fosse desejável e possível. A crise financeira declarada em 2008, sem reacção útil dos poderes anti-neo-liberais, porém, mostram o fim de uma época, bem presente na sensibilidade das pessoas, sobretudo dos mais velhos, a quem, de resto, atacam as reformas e a confiança, como se já estivessem mortos.
A derrota do neo-liberalismo não será espontânea. Como bem revela a história do ano 2009, se as forças anti-neo-liberais não desmantelarem e substituírem as solidariedades entre os poderosos, públicos e privados, as corporações empresariais e os estados continuarão a cooperar entre si, alheados do destino das populações que não tenham utilidade e violentos com quem esteja no local errado à hora errada.
O problema é, portanto, como construir uma base material para suportar a convergência subjectiva da miríade de orientações de vida pós-modernas, organizadas sobretudo em torno de organizações não governamentais, assegurando liberdade e democracia que o modelo comunista não soube assegurar? Quando os trabalhadores globalizados perderam capacidade de acção revolucionária, as novas tecnologias unem as classes médias em todo o mundo, a exclusão social se torna um risco banalizado e a pobreza não está a ser atacada.
A ficção das agendas políticas no desemprego torna clara a dependência dos trabalhadores relativamente ao capital: antes de dois ou três anos de crescimento dos lucros – mostra a experiência – não haverá queda nas taxas de desemprego (apesar das migrações e das regras penitenciárias impostas aos desempregados para manterem esse estatuto). O crescimento do nível estrutural do desemprego é uma tendência persistente desde os anos 80. A novidade actual é a queda dos salários reais, que se têm mantido estagnados nas últimas décadas.
Evidentemente, a competitividade com países do antigo terceiro mundo, por muito rápidos que sejam os crescimentos nalguns desses países, implica necessariamente uma redução nos encargos sociais, fatal para as populações dos antigos países desenvolvidos. Ora, as teorias sociais, concentradas nas questões de poder, marginalizaram (e estigmatizaram) os estudos das dimensões da vitalidade e da identidade sociais. E os partidos políticos, cada qual à sua maneira, mantêm a ilusão de que tudo voltará a ser como dantes, como se estivesse nas suas mãos fechar a globalização.
Como se costuma dizer, isto só vai lá com uma nova mentalidade. Nomeadamente, com a crítica profunda (e não apenas superficial) do determinismo economicista ou voluntarista.
A vitória da filosofia materialista corresponde a uma era de materialismo fiduciário. Essa época acabou nos anos 70 e a nova era de imaterialidade fiduciária está apenas no seu início. Dinheiro sempre foi uma forma sintéctica de representação das relações sociais. Distribuído em função do “mérito” atribuído por instituições – como as escolas e universidades, mas também associações laborais, patronais, políticas, secretas, e outras – tornou-se, entretanto, monopólio do sector financeiro, que está a destruir todas as instituições – como sempre o capitalismo fez na história – pervertendo-lhes as finalidades.
As tarefas que enfrentamos são desmesuradas. E resistir, manifestamente, não está a funcionar. Precisamos de avançar. Mas em que direcção?
Logo aparecem as seitas religiosas, as seitas secretas, os partidos, as tradições, a reclamaram que estão no terreno à espera de alguma atenção, faz muitos anos. Nalguns casos milénios. E muita gente tem mantido essas organizações, sem resultados práticos. O desespero, na Europa, tem levado muitos a apoiar soluções diabólicas, como as retomas dos projectos nazis. O que reclama urgência em avanços favoráveis à liberdade e à democracia.
A proposta de inauguração de processos de institucionalização de rendimentos básicos incondicionais (RBI) – a qualquer nível, mas sobretudo como forma de ultrapassar a crise institucional da União Europeia – responde positivamente a muitos dos dilemas que deixámos identificados atrás.
A economia e o dinheiro, por muito importante que sejam (e são), não esgotam a vida social, nem mesmo as vidas dos seus adoradores. A vida comunitária, as heranças eco-tecnológicas e a construção de hierarquias morais instituídas são pelo menos igualmente fundamentais para os humanos (mesmo para os que vivem da especulação financeira ou outros quaisquer tipos de alienados).
O RBI cria um financiamento estável capaz de assegurar uma base simbólica para uma economia social, liberta das condições políticas e das instituições de controlo social. O facto de ser simbólica – já que é apresentada como dinheiro – não evita que seja igualmente material. Na verdade, por ser simbólica não se sabe exactamente a que lhe irá corresponder materialmente. Mas sabe-se que se o dinheiro não corresponder a bens suficientes para assegurar uma vida digna a cada um e a todos os membros de uma sociedade (idealmente, de toda a humanidade) é porque o projecto RBI não está acabado. Se o dinheiro distribuído for tão pouco que se torne uma esmola, constituirá um reforço dos problemas já existentes e mais uma desilusão.
Em termos mais pragmáticos, a economia social já existe. Mas é uma economia apenas tolerada, nicho de existência de pessoas dependentes. Ou melhor, cuja independência depende das suas convicções políticas e, portanto, promotoras de dogmas e não de solidariedades; promotora de cumplicidades e resistências em vez de aberturas ao mundo e à igualdade. O RBI suficiente para permitir a cada um passar a ser senhor da sua vida, vencer o destino à força da sabedoria que seja capaz de pôr em prática, por sua própria lavra, sem arriscar a sua existência física, será certamente uma base material para uma transformação social positiva, capaz de melhorar as perspectivas negativas actualmente persistentemente vigentes nas classes trabalhadoras e nas classes médias.
Boa maneira de continuar a discutir estes temas é acompanhar o trabalho de criação do modelo familiar cooperativo, http://www.novacomunidade.org/. Ou da https://www.recivitas.org/, no Brasil, através das experiências de vida de Marcus e Bruna.