A questão do rendimento básico incondicional
Qual é a questão com este assunto do rendimento básico incondicional (RBI)? Porque razão é tão difícil levá-lo para a frente? A razão, parece, está profundamente enraizada na psique humana. Como Will Hutton terá escrito, “os humanos acreditam que a recompensa deverá resultar de um esforço proporcional”. Ora esta é a questão, não será? Hutton argumenta que os seres humanos foram concebidos para relacionar trabalho e ganho, e ponto final. Não há volta a dar. Quem não trabuca, não manduca, como diz o povo. Ora vamos discutir isto.
Se eu for acampar com uns amigos, ficarei satisfeito se todos ajudarem com a cozinha, a limpeza, a montagem das tendas, corte de alguns ramos para a fogueira e por aí fora. E vou protestar se alguém simplesmente ficar sentado enquanto todos os restantes estão a montar o acampamento. Isto é assim porque o trabalho envolvido apenas pode ser realizado por pessoas, pelos próprios campistas, e para o seu próprio benefício. É uma equipa, e é apenas justo que todos os membros da equipa colaborem na preparação do acampamento do qual todos vão beneficiar. Assumamos agora que esta é uma turma de campistas altamente tecnológicos, que trouxeram tendas de montagem automática, um fogão portátil com baterias, um robot de limpeza e um conjunto completo de comida enlatada. Quanto trabalho haveria para distribuir pelos campistas? Talvez apenas colocar as tendas nos seus lugares (estas iriam montar-se automaticamente a partir daí), ligar o fogão e abrir algumas latas. Isso poderia ser facilmente feito por uma pessoa, talvez duas no máximo. E os restantes? Bom, talvez seja melhor que se deixem ficar sentados e cantem algumas canções, o jantar estará pronto brevemente. Não me parece nada errado.
O papel da tecnologia torna-se evidente neste exemplo simples. Os seres humanos não foram concebidos para relacionar trabalho e ganho. Os seres humanos apenas se chateiam se tiverem de trabalhar mais do que precisariam se outras pessoas não estiverem a ajudar. Mas se máquinas estiverem a providenciar essa ajuda, deixa de ser injusto. Além disso, se as máquinas estão a ajudar e não faz sentido estarem seis pessoas a carregar em botões de tendas e a abrir latas, eu não me importo de fazer isso hoje e amanhã outra pessoa irá fazê-lo. E nessa altura vou sentar-me confortavelmente e tocar a minha guitarra, sem o menor sentimento de culpa.
Outra questão é que poderá ser que alguns “humanos acreditam que a recompensa deverá resultar de um esforço proporcional”, mas com certeza não será o caso de todos. Há pessoas que, vivendo de rendas – provenientes de terrenos, casas, ações de corporações ou ativos financeiros – não sentem vergonha, ou culpa, ou qualquer sentido de responsabilidade perante a sociedade. E, no entanto, são humanos. Os seres humanos não são concebidos desta ou daquela maneira. Somos produto do nosso ambiente e de circunstâncias particulares.
Ainda outra questão é a da herança. Não será verdade que todos, e quero mesmo dizer todo o ser humano à face deste planeta, nasce para uma longuíssima linhagem de evolução natural e social? Um recém-nascido não terá de reinventar a eletricidade para poder acender uma lâmpada na sala. Não terá de redescobrir a linguagem escrita para poder comunicar. Não terá de fazer betão a partir do nada para construir uma casa. As sociedades humanas tornam estas riquezas já existentes mais ou menos acessíveis aos indivíduos, mas é inegável que esta riqueza, natural ou social, existe. E está aí para a partilha, tendo crescido e aperfeiçoado ao longo de milhões de anos. O facto de não termos sido capazes de a partilhar durante tanto tempo, como uma sociedade global, é um assunto totalmente diferente. A verdade é que cada um de nós nasce num mundo extremamente rico, sem ter contribuído em nada para tal. Isso não é uma questão para debate, é apenas um facto.
Portanto, quantos argumentos há contra o RBI? A mim parece-me que apenas um. Porque uma vez aceite que todos os seres humanos têm direito a aceder a essa riqueza do mundo natural e de incontáveis gerações passadas de seres humanos, uma pessoa já estará a defender o RBI do ponto de vista moral. Porque não há maneira, seja lá qual for o ponto de vista, de uma pessoa alguma vez realizar um “esforço proporcional” para compensar o que recebe apenas pelo facto de estar vivo. Vamos, portanto, simplesmente passar à frente deste argumento irritante e fundamentalmente errado.
A seguir uma pessoa poderá perguntar-se: ok, o RBI é muito bom. Mas como é que agora o vamos financiar? Sejamos claros, um aspeto financeiro não poderá ser usado como um argumento fundamental contra o RBI. O financiamento tem a ver com distribuição de poder. O dinheiro é um acordo, e as pessoas poderão acordar de outras maneiras. O financiamento é, portanto, um desafio que resulta de vivermos todos juntos em sociedade. Diferentes pessoas têm diferentes perspetivas e sentimentos relativamente às coisas, mas se concordarem entre elas que a distribuição da riqueza social e natural deverá ser realizada por todos, como um direito humano, então o dinheiro irá aparecer nesse sentido. Alguns irão concluir que “por milagre”. Um milagre a partir de uma mentalidade obsoleta, uma consequência natural a partir de uma visão do mundo mais evoluída, expandida e inclusiva.
Uma vez que uma pessoa aceite o RBI do ponto de vista moral e tenha encontrado uma forma de o financiar – o que equivale a juntar uma quantidade suficiente de pessoas que suporte a ideia e desvie ou crie dinheiro para o implementar – ainda se poderá perguntar: mas e se a ideia for capturada pela extrema-direita, que apenas querem acabar com os Comuns, enterrar o Estado Social e privatizar tudo? Isso equivale a perguntar: e se um ditador qualquer captura o poder e transforma uma democracia imperfeita numa perfeita ditadura? Ao que eu respondo: temos de nos manter ativos e conscientes, a democracia não é um sistema escrito na pedra e temos de constantemente o defender e contribuir para este. Tudo pode ser transformado numa arma, para uma mente maldosa. Ou o RBI pode ser transformado numa ferramenta-de-privatizar-tudo para uma agenda da extrema-direita. Esse risco existe sempre. No fundo tudo depende de nós, indivíduos conscientes a defender o RBI e a saber como o financiar, a defesa da democracia em todos os momentos.
O RBI só pode ajudar todas as pessoas se for suportado e implementado democraticamente.
Mais informação em:
Will Hutton, “Utopia for realists: and how we can get there by Rutger Bregman – review”, The Guardian, 13 Março 2017
André Coelho
Engenheiro / engineer: Ecoperfil, Sistemas Urbanos Sustentáveis Lda.
Músico / musician: Contaminado, MPex
Ativista / activist: RBI Portugal (+ blog RBI), Architects and Engineers for 9/11 Truth, Basic Income News