O Direito ao Trabalho
A Teoria da Relatividade foi um trabalho de Einstein, que para se sustentar mantinha entretanto um outro trabalho, rotineiro e banal, num escritório de Berna. O assalto de 1866 ao banco de Liberty, no Missouri, foi trabalho com a marca de Jesse James. Antes da proibição, pela 13.ª emenda à respectiva Constituição, as plantações no sul dos EUA eram mantidas com trabalho escravo. A educação de uma criança é trabalho dos seus pais; o cuidado de um idoso trabalho dos seus filhos. A ida à lua foi um trabalho colectivo de grande engenho e coragem. O trabalho dos judeus em Auschwitz seria libertador, de acordo com o portão. O sucesso de Cristiano Ronaldo é fruto do seu trabalho. Versos de elogio à preguiça são um trabalho do génio de Fernando Pessoa.
A criação do Universo, por Deus ou pela natureza, pode dizer-se trabalho, e o “rolar de bosta” pelo escaravelho até ao buraco no solo de um sertão qualquer, também. Entre estas duas, o trabalho humano cobre todo o espectro de possibilidades.
A diversidade de realidades a que nos podemos referir com a palavra “trabalho” é tão grande que se tornam vãs as qualificações que constantemente se lhe colam com frases feitas: nada do que sobre o trabalho se possa dizer será verdadeiro para todas as formas que ele pode assumir. “O trabalho emancipa”, diz-se; mas emancipa? Algum sim, muito outro não. Diz-se que “trabalhar é contribuir para a sociedade”, mas é? Às vezes sim, mas também há muito trabalho socialmente destrutivo, algum dele até bastante bem pago. Diz-se que nos “realizamos pelo trabalho”, mas realizamos? Só se tivermos a sorte de poder fazer o trabalho certo para nós, porque se não a temos pode ser precisamente a necessidade de trabalhar o que nos afasta de nos realizarmos.
Sendo o trabalho este caleidoscópio de formas tão diversas, o que poderá ao certo querer quem reivindica o “direito ao trabalho”? Poderá querer licença para tentar perceber a natureza praticando ciência? Para se exprimir praticando arte? Para se superar praticando desporto? Para produzir bens ou serviços praticando alguma indústria? Para melhorar a vida de um avô prestando-lhe cuidados? Não exactamente. Quem reivindica o direito ao trabalho pretende fazer qualquer destas coisas, ou um milhão de outras, mas recebendo dinheiro por isso. Principalmente recebendo dinheiro por isso. Pretende um meio de subsistência. Porque trabalho, propiamente dito, não falta: quem apenas quer trabalhar, trabalha sem ter de pedir licença a ninguém. Há hoje, como sempre houve, milhões de cientistas, de artistas, de desportistas, de industriosos, de cuidadores e em geral de pessoas activas que nunca reivindicaram o direito a fazer o que fazem: simplesmente fazem-no. Mas a subsistência sim, para os muitos que não a têm assegurada ela tem de ser reivindicada.
E isto é o que acontece neste nosso tempo: quem quer reivindicar meios de subsistência não o faz directa e assumidamente, reivindica antes o direito ao trabalho. E quem reivindica o direito ao trabalho, na realidade, o que está a fazer é a reivindicar meios de subsistência.
A subsistência disfarça-se de trabalho. O caso de Einstein ilustra-o bem: usou o escritório de Berna como meio de subsistência, enquanto o seu real trabalho era a Física. Mais: o escritório só podia atrapalhar esse trabalho e, assim que pode, ele deixou-o. Ainda bem, os livros de História não nos falam da obra que deixou no escritório, só da que fez no seu tempo “pós-laboral”.
E nós, gentes do início deste século XXI, não ilustramos esta realidade pior do que Einstein. Na maior parte dos casos, o que fazemos nos nossos empregos dificilmente deixará marca de relevo, quer na história do mundo quer na das nossas vidas pessoais. Entreguemos então essas tarefas às máquinas, que já as podem fazer ou poderão muito em breve. Dediquemo-nos, cada um, àquilo por que o seu interior clama (e se for preciso, reaprendamos a escutar esse clamor interior, que os anos de luta pela subsistência nos treinaram para abafar). Dediquemo-nos àquilo a que nos faça realmente sentido dedicarmo-nos. Trabalhemos, se trabalhar for para nós, mas que esse trabalho não seja mais subsistência disfarçada. Que seja, para cada um, a obra especial que sente poder deixar no mundo, e a que preencherá de significado a sua existência.
Ao serviço da subsistência, como o temos, o trabalho ocupa hoje nas nossas vidas um plano muito inferior àquele que deveria ocupar. Temo-lo como meio, em vez de como fim. Servimo-nos dele para sobreviver, em vez de o termos como forma elevada de viver.
No futuro isto mudará. Terá de ser. No futuro, o problema do direito à subsistência terá de ser directamente atendido por um Rendimento Básico Incondicional (RBI). E se o for por um RBI que dê, a todos, garantias de subsistência material não só presentes mas também futuras; um RBI não apropriável por nenhuma elite que o possa colocar ao serviço dos seus próprios interesses; um RBI mantido e controlado pelas pessoas comuns, isto é, um RBI de Todos para Todos (RBI-TT), seremos então finalmente libertados para viver e nos ocuparmos do que nos faça realmente sentido. Ganharemos, enfim, o direito de nos dedicarmos aos trabalhos que sentimos merecer o nosso empenho.
A actual tentativa de se assegurar indirectamente o direito à subsistência através deste chamado “direito ao trabalho” não assegura convenientemente nenhum dos direitos. Atender directamente ao direito à subsistência através de um RBI-TT assegurará não só este como, sem necessidade de qualquer acção adicional, o verdadeiro direito ao trabalho.
Estando garantida a subsistência deixará por fim o trabalho de ser mera necessidade. Será elevado a escolha, a realização pessoal, a aspecto de vida emancipada e plena. Só estando garantida a subsistência será verdadeiramente o trabalho um direito consagrado para todos.
Miguel Horta