Para a história do grupo RBI de Lisboa
III - Como criar esperança nesta época de mudança que vivemos?
No ocidente, observa-se o fim do crescimento e o declínio da classe média, juntamente com o crescimento da pobreza e o envelhecimento demográfico. Do ponto de vista financeiro, vive-se uma viragem para a moeda virtual, com o auxílio das novas tecnologias de informação e os efeitos de desintegração social associados.
A imaginação dos povos acompanha as transformações práticas da vida, cujos ciclos de crescimento e destruição são cada vez mais curtos e sectoriais, à medida que as vidas das pessoas se alongam e as experiências de vida se trocam através dos processos de globalização e de mobilidade social descendente. A imaginação e o conhecimento transformam-se de unitários (de classe ou nacional) em caleidoscópicos, como descobriram os pós-modernos.
Poder-se-ão encontrar padrões fractais capazes de ajudar a compreender a vida, a partir das novas experiências sociais metropolitanas e em rede e das novas potencialidades bio-info-tecnológicas? Saberão as sociedades integrar as ciências ecologicamente convergentes no novo mundo que se anuncia como senhor de novas condições climatéricas?
O neo-liberalismo, cioso dos preconceitos economicistas centrados na adoração do mercado, tem procurado menorizar o valor da crítica social. A teoria social, em (má) reacção, encapsulou-se num estado pré-paradigmático, como se dizia nos anos 70, entre as actividades culturais e as ciências propriamente ditas. Defendeu-se e resistiu fechando-se, como os representantes dos trabalhadores o fizeram, em torno do compromisso do Estado Social, na esperança da derrota política do neo-liberalismo permitir voltar ao crescimento económico, como se isso fosse desejável e possível. A crise financeira declarada em 2008, sem reacção útil dos poderes anti-neo-liberais, porém, mostram o fim de uma época, bem presente na sensibilidade das pessoas, sobretudo dos mais velhos, a quem, de resto, atacam as reformas e a confiança, como se já estivessem mortos.
A derrota do neo-liberalismo não será espontânea. Como bem revela a história do ano 2009, se as forças anti-neo-liberais não desmantelarem e substituírem as solidariedades entre os poderosos, públicos e privados, as corporações empresariais e os estados continuarão a cooperar entre si, alheados do destino das populações que não tenham utilidade e violentos com quem esteja no local errado à hora errada.
O problema é, portanto, como construir uma base material para suportar a convergência subjectiva da miríade de orientações de vida pós-modernas, organizadas sobretudo em torno de organizações não governamentais, assegurando liberdade e democracia que o modelo comunista não soube assegurar? Quando os trabalhadores globalizados perderam capacidade de acção revolucionária, as novas tecnologias unem as classes médias em todo o mundo, a exclusão social se torna um risco banalizado e a pobreza não está a ser atacada.
A ficção das agendas políticas no desemprego torna clara a dependência dos trabalhadores relativamente ao capital: antes de dois ou três anos de crescimento dos lucros – mostra a experiência – não haverá queda nas taxas de desemprego (apesar das migrações e das regras penitenciárias impostas aos desempregados para manterem esse estatuto). O crescimento do nível estrutural do desemprego é uma tendência persistente desde os anos 80. A novidade actual é a queda dos salários reais, que se têm mantido estagnados nas últimas décadas.
Evidentemente, a competitividade com países do antigo terceiro mundo, por muito rápidos que sejam os crescimentos nalguns desses países, implica necessariamente uma redução nos encargos sociais, fatal para as populações dos antigos países desenvolvidos. Ora, as teorias sociais, concentradas nas questões de poder, marginalizaram (e estigmatizaram) os estudos das dimensões da vitalidade e da identidade sociais. E os partidos políticos, cada qual à sua maneira, mantêm a ilusão de que tudo voltará a ser como dantes, como se estivesse nas suas mãos fechar a globalização.
Como se costuma dizer, isto só vai lá com uma nova mentalidade. Nomeadamente, com a crítica profunda (e não apenas superficial) do determinismo economicista ou voluntarista.
A vitória da filosofia materialista corresponde a uma era de materialismo fiduciário. Essa época acabou nos anos 70 e a nova era de imaterialidade fiduciária está apenas no seu início. Dinheiro sempre foi uma forma sintéctica de representação das relações sociais. Distribuído em função do “mérito” atribuído por instituições – como as escolas e universidades, mas também associações laborais, patronais, políticas, secretas, e outras – tornou-se, entretanto, monopólio do sector financeiro, que está a destruir todas as instituições – como sempre o capitalismo fez na história – pervertendo-lhes as finalidades.
As tarefas que enfrentamos são desmesuradas. E resistir, manifestamente, não está a funcionar. Precisamos de avançar. Mas em que direcção?
Logo aparecem as seitas religiosas, as seitas secretas, os partidos, as tradições, a reclamaram que estão no terreno à espera de alguma atenção, faz muitos anos. Nalguns casos milénios. E muita gente tem mantido essas organizações, sem resultados práticos. O desespero, na Europa, tem levado muitos a apoiar soluções diabólicas, como as retomas dos projectos nazis. O que reclama urgência em avanços favoráveis à liberdade e à democracia.
A proposta de inauguração de processos de institucionalização de rendimentos básicos incondicionais (RBI) – a qualquer nível, mas sobretudo como forma de ultrapassar a crise institucional da União Europeia – responde positivamente a muitos dos dilemas que deixámos identificados atrás.
A economia e o dinheiro, por muito importante que sejam (e são), não esgotam a vida social, nem mesmo as vidas dos seus adoradores. A vida comunitária, as heranças eco-tecnológicas e a construção de hierarquias morais instituídas são pelo menos igualmente fundamentais para os humanos (mesmo para os que vivem da especulação financeira ou outros quaisquer tipos de alienados).
O RBI cria um financiamento estável capaz de assegurar uma base simbólica para uma economia social, liberta das condições políticas e das instituições de controlo social. O facto de ser simbólica – já que é apresentada como dinheiro – não evita que seja igualmente material. Na verdade, por ser simbólica não se sabe exactamente a que lhe irá corresponder materialmente. Mas sabe-se que se o dinheiro não corresponder a bens suficientes para assegurar uma vida digna a cada um e a todos os membros de uma sociedade (idealmente, de toda a humanidade) é porque o projecto RBI não está acabado. Se o dinheiro distribuído for tão pouco que se torne uma esmola, constituirá um reforço dos problemas já existentes e mais uma desilusão.
Em termos mais pragmáticos, a economia social já existe. Mas é uma economia apenas tolerada, nicho de existência de pessoas dependentes. Ou melhor, cuja independência depende das suas convicções políticas e, portanto, promotoras de dogmas e não de solidariedades; promotora de cumplicidades e resistências em vez de aberturas ao mundo e à igualdade. O RBI suficiente para permitir a cada um passar a ser senhor da sua vida, vencer o destino à força da sabedoria que seja capaz de pôr em prática, por sua própria lavra, sem arriscar a sua existência física, será certamente uma base material para uma transformação social positiva, capaz de melhorar as perspectivas negativas actualmente persistentemente vigentes nas classes trabalhadoras e nas classes médias.
Boa maneira de continuar a discutir estes temas é acompanhar o trabalho de criação do modelo familiar cooperativo, http://www.novacomunidade.org/. Ou da https://www.recivitas.org/, no Brasil, através das experiências de vida de Marcus e Bruna.
António Pedro Dores